O primeiro navio carregado de cereais ucranianos, com um salvo-conduto acordado por Kiev e Moscovo em Istambul, finalmente içou ancora de Odessa, esta segunda-feira, após quase duas semanas de receio de que este compromisso colapsasse. O que não faltou foram desafios, incluindo um bombardeamento do porto de Odessa com mísseis russos, ou a acusação do Kremlin de que os ucranianos atacaram o quartel-general da sua frota do Mar Negro, em Sebastopol, durante as celebrações do Dia da Marinha Russa, com um drone explosivo.
Apesar destas adversidades, o Razoni, um navio com a bandeira da Sierra Leone, carregado com mais de 26 mil toneladas de milho, lá partiu. Deverá ser escoltado por navios ucranianos e inspecionado pela Turquia e pelas Nações Unidas, para verificar se não leva mais nada que não alimentos, cruzando por águas recém-desminadas e o estreito do Bósforo, seguindo rumo a Tripoli (cidade homónima da capital líbia), no Líbano. Que está a sofrer uma das mais profundas crises económicas registadas na história moderna, e é um dos muitos países em desenvolvimento que teme sofrer uma crise alimentar agravada pela invasão russa.
A partida do Razoni marcou um “dia de alívio para o mundo, especialmente para os nossos amigos no Médio Oriente, Ásia e África”, celebrou o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba.
Já António Guterres prometeu que as Nações Unidas – que antes da guerra e do bloqueio russo do Mar Negro costumavam abastecer boa parte dos seus programas de ajuda alimentar comprando cereais baratos à Ucrânia – fariam tudo para que este fosse o primeiro de muitos transportes de alimentos.
“Pessoas à beira da fome precisam que estes acordos funcionem, de maneira a sobreviver”, explicou o secretário-geral das Nações Unidas, numa conferência de imprensa em Nova Iorque. “Países à beira da bancarrota precisam que estes acordos funcionem, de maneira a manter as suas economias vivas”, reforçou Guterres.
Já o Kremlin também tem a ganhar com este acordo. Não se trata de um mero gesto de boa vontade. Aliás, se não fosse esse o caso, seria difícil de compreender que Vladimir Putin aceitasse que os Governo de Kiev, que ainda há umas semanas estava à beira do colapso financeiro, avisaram alguns dos seus aliados, recuperasse uns milhares de milhões de euros de que tanto precisa, graças às receitas da venda de cereais.
Em troca de permitir a venda de cerca de 22 milhões de toneladas de cereais ucranianos que se acumulavam nos portos de Odessa, Chornomorsk e Yuzhne, a Rússia conseguirá mais facilmente exportar os seus próprios cereais e fertilizantes. Teoricamente, estes bens não são abrangidos pelas sanções ocidentais, mas, na prática, os bloqueios à navegação russa impedem a sua exportação. Ou seja, a Rússia, apesar de ser dos grandes produtores de cereais mundiais, não conseguia lucrar com o aumento dos preços devido à sua invasão. Se lucrasse, talvez os seus navios ainda estivessem a bloquear o Mar Negro.
Além disso, talvez tenha dado um empurrão o facto de algumas das mais altas figuras do Kremlin terem ligações à indústria agrícola russa. A segunda maior empresa exportadora de cereais do país, a Demetra, é em parte detida por Alexander Vinokurov, cunhado do ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, apontou o Carnegie Endowment for International Peace. Já a produtora agropecuária Miratorg tem sido ligada à mulher do ex-Presidente Dimitri Medvedev.