Eis que chega a notícia impossível: o Chalana morreu! Mentira! Fernando Albino Sousa Chalana nasceu no Barreiro no dia 10 de Fevereiro de 1959 e nunca mais morreu!
Quando almocei com ele e um grupo de amigos, há uns tempos, num restaurante de Linda a Velha onde o Fernando gostava de ir, fiquei com a sensação angustiante de que não voltaria a vê-lo. Chalana sempre foi um menino, mas agora era mais menino do que nunca. Não, não merecia. Não merecia que a vida (ou Deus?) lhe tivesse virado as costas, logo a ele, paradoxo da alegria, para todo o sempre um rapazinho com uma bola nos pés, a bola que lhe obedecia como um cachorro vadio que ansiava por ser tocado pelos seus pés de musselina.
Fernando Chalana dava pontapés num mundo empanturrado de vaidades – ele que era o jogador menos vaidoso que alguma vez conheci, embora tivesse todas as razões para exibir uma certa vaidade – e fintava a verdade. Digo que fintava a verdade porque era, também, o rei da fantasia. Isto é, fazia fintas impossíveis, assim como quem vai e depois já não vai, a bola ora num pé ora no outro, como se estivesse presa por um elástico, de repente dava a sensação de que fugia ao seu controlo e, logo em seguida, regressava obediente e submissa, apaixonada por ele, absolutamente apaixonada por ele.
Um dia li um texto do Bruno Vieira do Amaral e percebi que há muito tempo que não lia o Chalana a correr. Sim, disse bem: ler do verbo ler. Convenhamos: nem toda a gente sabe escrever o Chalana. Ou melhor: todos podem escrevê-lo porque ele foi (e é!) universal, ou de todos nós, se preferirem, mas como escrever o impossível? Ah! Como corria o Chalana! Vi tantas vezes jogar o Chalana e assim, de repente, já não me lembrava de como era ler o Chalana a jogar. Há uma frase no meio da prosa do Bruno que fala da lúcida cicatriz. Lúcida Cicatriz: talvez seja isso mesmo que agora dói. A Bethânia canta, como música de fundo: “Eu sei que as cicatrizes falam/Mas as palavras calam/O que eu não me esqueci…”.
Se Peter Pan era o rapazinho que não queria crescer, Chalana, quando apareceu rasgando-nos os olhos até à nuca com os seus movimentos imponderáveis e os seus dribles pródigos e impossíveis, era o rapazinho com barba de homem dos Evangelhos. Tinha 17 anos. Titular do Benfica. 17 anos! Brincadeira!
O Nelson Rodrigues diria logo: “Ainda precisa da autorização do pai para ver filmes da Brigitte Bardot!” Ora, o Chalana não precisava de autorização para nada. Era ele e a bola e a multidão fascinada em seu redor sem saber que sons deixar sair pela garganta. Admiração? Fascínio? Ou pura alegria? Fernando, Peter Pan, o menino que perdeu a sombra. Chalana: eu lembro-me – os adversários corriam tresloucados atrás dele, uns caçavam-no a patadas como se fosse uma ratazana, outros limitavam-se a olhar para a sua sombra. E ele já estava muito à frente dela no caminho estreito e irreversível do golo.
Deus-Duende! Lá no alto, vinda do infinito firmamento, uma voz dizia, rouca do cansaço do espanto: “És um Deus escondido!” Deus-Duende. Ficava na alma do adversário uma lúcida cicatriz… E Deus, injusto para com ele, destruindo-lhe a vida aos poucos, roubando-lhe a alegria, fazendo do rapazinho que nunca quis crescer um homem triste.
Foi a tristeza que matou o futebol de Chalana. Foi a tristeza que o roubou a todos nós, seus amigos, seus companheiros, apenas seus espectadores. Chalana ia para além da metafísica: de hoje para a eternidade, a raça humana divide-se em duas partes – a dos que viram jogar Fernando Chalana; a dos que nunca viram jogar Fernando Chalana. Os segundos agradeçam a graça dessa oferta divina.
Chalana e o Duende de Lorca eram íntimos. Tão íntimos como Chalana e a bola. De uma intimidade excitante, quase sexual. Liberdade para Chalana! Liberdade para a finta! “Vi as portas da prisão/Abertas de par em par/Vi passar a procissão/Do meu país a cantar”. E os pés do Fernando cantavam e recitavam poemas de cor, uns atrás dos outros, poemas e canções de liberdade…
Quem viu jogar Fernando Chalana, guarde-o também na parede branca da saudade. Toda a gente obedecia às suas órbitas arbitrárias: companheiros, adversários, público… Os olhos fixavam-se na sua dança enlouquecida por espíritos, pelos seus bailados desse poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica. Nenhum filósofo seria capaz de explicar Fernando Chalana. Só os poetas! “Cada degrau que sobe na torre da sua perfeição e às custas da luta que trava com um Duende, não com um anjo, como se diz, nem com a sua musa”.
Quando Chalana joga, ainda que apenas nas lembranças, deixem falar os poetas! Joga a bola menino! E ele jogava…
Sempre poema. Quando era pequeno, o meu pai ensinava-me poemas que eu aprendia de cor. Ele dizia que fazia bem à memória. Uma espécie de ginástica. Só muitos anos depois fiquei a saber que fazia bem à vida.
O Chalana é, como costuma dizer o povo, um rapaz para a minha idade. Um dia, entrei no Estádio da Luz numa tarde de domingo e vi-o. E, de repente, surgiu-me nítido de sol o poema de Miguel Torga. “Joga a bola menino/Dá pontapés certeiros/Na empaturrada imagem deste mundo/Traça no firmamento órbitras arbitárias/Nas quais os astros fingidos/Percam a majestade/Brinca na eterna idade/Que eu já tive e perdi/Quando por imprudência/Saltei o risco branco da inocência/E cresci”.
Chalana não tinha a imprudência. Por isso não saltou o risco branco. Ficou na inocência até hoje. Agora e na hora da nossa morte.
Há tanto para escrever sobre Chalana que poderia encher todo este jornal e, em seguida um livro, e depois disso, mais dois ou três volumes. Há fintas do Chalana que valem por parágrafos inteiros de obras de filosofia.
Quando Chalana fez 60 anos, recusei-me a acreditar. Acho que ninguém acreditou. Lúcio Cardozo, jornalista brasileiro, no dia em que fez 40 anos, irritou-se: “Não sei como isto me foi acontecer! Logo a mim que tenho um talento tão grande para ser criança…”. 60 anos? Como é que isso foi acontecer! Logo ao Chalana que teve sempre um talento tão grande para ser criança!
Agora, a rádio diz: “Chalana Morreu!” E eu respondo como o Nelson Rodrigues respondeu à mulher que lhe deu a notícia da morte de Guimarães Rosa: “Morreu? Mas morreu como, se estava vivo?”
Nós, nas bancadas da velha Luz, juntávamo-nos aos milhares, e ele corria livre sem que ninguém lhe pudesse tocar, como um fantasma, ou melhor, como uma sombra que se desprendesse do corpo, assim à maneira de Peter Pan, o rapazinho que não queria crescer. Chalana era um poema no lugar em que os outros não passavam de prosa.
“Joga a bola menino…”
Garcia Lorca nunca viu jogar o Chalana mas sabia tudo sobre o duende: “A verdadeira luta é com o duende”, dizia.
A verdade, meus amigos, é esta: Chalana podia ser o próprio Duende!
Vejo-o ainda. Ele não se repete.
Querido Fernando: continuarás pela vida fora a ser a estrela por entre os astros fingidos! E não, não me digam que morreste. Nós dois sabemos que tu és para sempre!