Por Felícia Cabrita e Maria Moreira Rato
O historial do doente exigia redobrados cuidados, vigilância apertada. Era um homem deprimido e sofria de ansiedade e insónia, como tantos outros, e estava devidamente medicado para ambos os distúrbios. Os últimos acontecimentos eram, por si só, esclarecedores. O Algarve, tal como o Alentejo, é uma das zonas do país onde se cometem mais suicídios. A 31 de julho, Luís Manuel Labiza, de 68 anos, nado em Ferreiras, no concelho de Albufeira, deu entrada no Hospital de Faro depois de aparentemente ter caído de uma árvore.
Com lesões múltiplas, o homem foi para a Unidade de Cuidados Intensivos. Sem que se antecipasse um desfecho infeliz, Luís Manuel é deslocado para a enfermaria da Cirurgia com seis camas. Ficou perto da janela e não da entrada – como é habitual fazer-se com os doentes que apresentam risco de atentar contra a própria vida ou a dos restantes doentes. Além disso, de acordo com a informação que o i apurou, o Hospital de Faro costuma retirar os puxadores das janelas em casos como o de Luís Manuel e, desta vez, não o terá feito.
Apesar de esta suposta medida de segurança não parecer a mais eficaz, a verdade é que nem sequer terá sido posta em prática, pois o homem terá tido tempo de se livrar dos drenos e da algália e abrir a janela. Um doente, em pânico, pediu socorro, mais perspicaz do que os médicos, mas como era a hora do giro da mudança de turno dos profissionais de saúde, Luís Manuel abriu a janela e lançou-se.
Do registo do doente, que se esperaria pormenorizado, não consta este drama. Não interessava. Apenas se pode ler, de acordo com o documento a que o i teve acesso: “Queda do 4º andar. Encontrado em respiração agónica que evolui para PCR em AESP, manobras de SAV 20min com recuperação da circulação espontânea. Estabilização na SE. Fluidos, epinefrina, ácido tranexâmico. ECO FAST sem sinais da hemoragia. Peço TC CE, pescoço, tórax, abdómen pélvico. Na sala de TC novamente PCR em AESP. Verificado óbito às 23:30h”.
Ficha do doente com informação escassa sobre as circunstâncias da morte No decorrer da leitura do resto da ficha do doente – com notas da enfermagem, da equipa médica e espaço para aquelas que seriam destinadas à alta – esta é a única referência que encontramos aos últimos momentos de vida de Luís Manuel. Não se sabe se tropeçou ou se foi empurrado.
A verdade é que na última nota da equipa de enfermagem, relativa às 15h17 do dia 9 de agosto, aproximadamente 8 horas antes da morte do idoso, lê-se somente: “Colhido exsudado superficial da ferida cirúrgica, apresentou drenagem de conteúdo hemato-purulento”.
Contudo, além de sabermos que Luís Manuel tinha caído de uma árvore, já numa provável tentativa de suicídio, as informações disponíveis na sua ficha são claras quanto ao estado de confusão mental em que se encontrava. E, mesmo assim, a morte é completamente ignorada porque, como já foi frisado, somente um médico refere a queda.
A título de exemplo, na área dos antecedentes pessoais, começamos por ler: “Doente não consegue especificar”, sendo que no final é mencionado o “seguimento em consulta de Psiquiatria por ansiedade e insónia”. As “dificuldades de comunicação com o doente por hipoacusia e alguma confusão”, assim como o facto de a esposa ter deixado claro que “parte da confusão no discurso se deve às máscaras, pois está habituado a fazer leitura labial”, ainda que parecesse ter “um discurso ligeiramente incoerente em alguns momentos”, também são observações e detalhes que não ficaram esquecidos.
Pelas 10h24 do dia em que viria a morrer, uma médica então responsável pelo idoso escrevia: “Doente ativo, parcialmente colaborante (dificuldade de audição) e orientado no espaço e pessoa, mas não no tempo (sabe o mês, mas não o dia)”. E se ainda restassem dúvidas quanto ao historial clínico de Luís Manuel, bastaria consultar a medicação habitual: um inibidor seletivo da recaptação de serotonina utilizado para tratar a depressão e também a ansiedade – um ansiolítico que pertence à classe das benzodiazepinas –, um antidepressivo e uma benzodiazepina que serve para tratar a ansiedade e os distúrbios do sono.
Esta não será a primeira vez que um doente possivelmente pôs fim à vida neste hospital. Corria o dia 1 de agosto de 2003 quando uma jovem de 26 anos se atirou do sétimo piso do Hospital de Faro. À época, segundo informações recolhidas pelo Correio da Manhã junto de fonte dos Bombeiros Municipais daquela cidade, “foi tudo muito rápido”, sendo que a rapariga “estava empoleirada no parapeito do último andar do hospital, quando os bombeiros ali chegaram”.
No momento em que “estavam a elevar a ‘lança’ da auto-escada para chegar à suicida (…) nada foi possível fazer”, mas “alguém, do lado de dentro do hospital, tentou segurar a jovem e, nesse momento, debruçou-se sobre o parapeito e atirou-se”.
“Não deu tempo para nada, fomos impotentes, apesar de todo o nosso esforço”, lamentava o comandante dos Bombeiros Municipais de Faro. À semelhança de Luís Manuel, ainda apresentava sinais de vida e os bombeiros tentaram de imediato várias manobras de reanimação, mas quando deu entrada no bloco operatório para ser submetida a uma cirurgia, não foi possível salvá-la devido aos traumatismos que sofrera.
Desfechos semelhantes tiveram doentes que estavam internados noutras instituições hospitalares. No final de setembro de 2021, um jovem, de 28 anos, saltou do primeiro andar do hospital de Vila do Conde e ficou em estado grave. Em janeiro de 2016, um idoso de 80 anos atirou-se do sétimo piso do Hospital de Abrantes e morreu. Muitos anos antes, em agosto de 2001, um doente que tinha dado entrada no Hospital de Viana do Castelo após uma tentativa de suicídio com raticida atirou-se do sétimo andar daquela instituição.
O i contactou o Centro Hospitalar do Algarve, mas apenas obteve silêncio.