O passado tornou-se, hoje mais do que nunca, uma questão delicada. É difícil saber como se relacionar com ele, e sobretudo numa época que exerce sobre o tempo uma pressão insuportável, no sentido de manter um enredo de tal modo apertado que provoca em nós esta vertigem imersiva numa duração sem interrupções. Vigora actualmente uma espécie de totalitarismo do presente, uma marcha imparável que já não cede nem rende a guarda, um tempo que não passa, que opera continuamente e faz do próprio relógio um artefacto que, com o seu movimento circular, apenas desenha a sensação do escoar das esperanças de transformação para o ralo. E se o tempo já não se conjuga com quaisquer promessas de longo prazo, os homens perdem a relação com o seu princípio de superação, com o sentido utópico da existência. Utopia aqui significa não render-se às coisas como elas são, mas lutar para que possam chegar a ser como deviam.
Claudio Magris diz-nos que “a sobrevivência do passado confere à realidade uma aura pungente e ao mesmo tempo espectral”. É certo, contudo, que não se chega a fruir da força de exemplo do passado se nos limitamos a mimetizar antigos modos, sendo antes necessário absorver essa névoa que se coloca entre este vivaz e absurdo hoje e o que ficou para trás. Há tanta necrofilia na memória, tanto fascínio por ruína e putrefacção, tanta indagação médico-legista em vísceras liquefeitas (Mircea Cărtărescu) que é preciso escapar a essa forma fétida de adoração e submissão a algo que fica assim a dever o seu esplendor à sua condição de imobilidade e ruína. Walter Benjamin afirmava que o passado deve ser salvo não tanto do esquecimento e do desprezo, mas mais de um determinado modo de o transmitir: aquele que consiste em considerá-lo como uma “herança”, imobilizada num culto, onde se investem mil cuidados para não interromper a tradição. Este modo de considerar o passado, acrescenta Benjamin, é mais nefasto do que poderia ser o seu desaparecimento.
E o que nos empurra para esta reflexão é um sinal de como o passado continuamente fertiliza a relação com o que virá, impedindo-nos de ceder nas conquistas mais importantes frente a um artificialismo repentista desse presente que atinge o tempo como um fungo, formando uma fila comprida, ininterrupta de corpos esgotando-se e falecendo uns dentro dos outros. Assim, nas obras de recuperação da catedral de Notre-Dame, depois do incêndio que, em 2019, provocou danos significativos na complexa estrutura do telhado, conhecida como A Floresta, devido à imensa quantidade de árvores usadas na sua construção, e derrubou ainda a agulha da torre principal, foram chamados ao esforço de replicar na sua forma original esse que é um dos monumentos mais emblemáticos da Cidade das Luzes um bando de carpinteiros que passaram os últimos 25 anos a aprimorar técnicas medievais. Foi isto o que lhes permitiu erguer ‘à mão’ uma treliça de carvalho de três toneladas há pouco mais de uma semana. O feito revestiu-se de um simbolismo decisivo, sobretudo tendo em conta que, depois do devastador incêndio, ninguém julgava que fosse possível restituir a catedral à sua anterior condição. O momento em que a estrutura foi elevada decorreu durante uma cerimónia que assinalou as Jornadas do Património Europeu, e permitiu a centenas de pessoas terem um vislumbre em primeira mão dos métodos rústicos usados há 800 anos para construir as molduras triangulares na nave de Notre-Dame de Paris. Dias antes, na sua primeira visita ao estaleiro da catedral, a ministra da Cultura do governo francês, Rima Abdul-Maruk, reconheceu que a natureza “extremamente complexa” da empreitada de recuperação tornava “ambicioso” o objectivo de reabrir o edifício ao público em 2024, mas reafirmou o compromisso com o prazo definido pelo presidente francês Emmanuel Macron na própria noite do incêndio, a 15 de abril de 2019, tendo prometido que Notre-Dame iria reabrir em todo o seu esplendor a tempo de ser admirada pelos visitantes de Paris no ano em que a cidade acolherá os Jogos Olímpicos.
Tendo escapado à ameaça de demolição que pesava sobre ela no período da ocupação nazi, toda a gente conhece esse episódio milagroso em que Paris e os seus monumentos foram poupados devido ao grau de eloquência da sua beleza, que sem pronunciar uma palavra, soube formular a mais tocante súplica quando, em agosto de 1944, Hitler ordenou a destruição da cidade. Foi o próprio governador militar alemão quem se recusou a aceitar as ordens, e conspirou nas costas do Führer sabendo que a história podia até perdoar ao seu país as vidas de milhões de homens, mas nunca perdoaria um crime que roubasse ao futuro esta forma de conviver com a grandiosidade do passado. De resto, o incêndio nem foi a primeira vez que o monumento sofreu sérios danos. A Revolução Francesa deixara as suas marcas, mas essa força de sobrevivência apenas adensou a sua aura pungente, ajudando a fazer deste monumento um símbolo que a História se encarregou de ligar ao próprio destino da França. Era, de resto, assim que começava o trágico romance de Hugo, em 1931: A palavra esculpida na parede significa “destino”.
Foi ali, naquela catedral católico-romana, que a Terceira Cruzada foi anunciada por Heráclio, o arcebispo de Cesaréia, foi ali que Henrique VI foi coroado rei da França, e Napoleão, imperador. Foi nesta catedral que Joana d’Arc foi beatificada, e após a libertação de Paris, este foi o monumento para o qual se voltou Charles de Gaulle ao dirigir os seus homens, numa procissão pelos Campos Elísios. Há um sem fim de mitos menores e maiores que, como a pedra, estão entretecidos nesta construção situada na pequena ilha Île de la Cité em Paris, rodeada pelas águas do Sena.
Um dia após a tragédia, Macron prometeu reconstruir a igreja “sem alterar uma única viga”. Nessa altura, a opinião pública reagiu com alívio geral à promessa e contribuiu com milhões de euros para a reconstrução. Numa entrevista dada recentemente ao jornal Le Figaro, o general Jean-Louis Georgelin, responsável máximo pelo restauro de Notre-Dame, indicou que tinham sido recolhidos cerca de 846 milhões de euros, doados por 340 mil pessoas e instituições de 150 países. Cerca de 150 milhões foram gastos na primeira fase da obra, que terminou em setembro do ano passado, tendo ainda sofrido alguns atrasos causados pela pandemia de covid-19, e que consistiu na consolidação e estabilização estrutural do edifício. Ainda em curso, a segunda fase envolve a recuperação e limpeza do interior da catedral, muito afectado pelas chamas, incluindo o restauro do grande órgão de Notre-Dame, e ainda a renovação do equipamento técnico do edifício. Georgelin estima que serão necessários 550 milhões para levar esta segunda etapa a bom termo. O general adiantou que reabrir a catedral em 2024 era um objectivo “tenso, rigoroso e complicado”. E é preciso lembrar ainda a contenda que actualmente envolve o programa de restauro do edifício e da zona envolvente, sendo que, no final do ano passado, a Comissão de Arquitectura e Património Nacional da França aprovou as propostas da diocese de Paris que deseja oferecer um visual mais moderno a Notre-Dame. Assim, ainda que Macron tenha prometido que nada seria alterado, os planos actuais pretendem trazer “uma nova vida” à catedral, e, para esse efeito, no interior passarão a ser projectadas nas paredes citações da Bíblia em vários idiomas e haverá instalações de arte no lugar dos antigos confessionários do século XIX. As tradicionais cadeiras de palha foram substituídas por bancos mais confortáveis. E em vez de iluminação lançada dos tectos, optar-se-á por luzes mais suaves para proporcionar um ambiente intimista às 2.400 missas e 150 concertos realizados anualmente. Com as alterações, a diocese espera fazer de Notre-Dame um espaço “menos estático, mais mutável na sua circulação”. Patrick Chauvet, reitor de Notre-Dame, afirmou ao jornal francês Le Monde que as propostas permitirão “uma visita mais fácil e agradável ao monumento religioso e criarão um diálogo entre a arquitectura medieval de Notre-Dame e características novas e mais modernas”. Contudo, o desejo de trazer “uma nova vida” à catedral foi recebido com desagrado por muitos, e levou 100 figuras públicas a assinar um artigo no jornal francês Le Figaro defendendo que as ideias apresentadas “minam totalmente a decoração e o espaço religioso” do monumento gótico. Ao The Art Newspaper, o arquitecto parisiense Maurice Culot, autor de vários livros sobre arquitectura religiosa no século XIX, referiu que o projecto aprovado corre o risco de transformar Notre-Dame numa espécie de “Disneylândia”. “Não faz nenhum sentido. Estamos a reconstruir a catedral e a torre como estavam, com materiais antigos como pedra, madeira e chumbo, e agora teremos um parque temático para turistas estrangeiros no interior? Por que é que o projeto não foi confiado aos mesmos arquitectos para manter a unidade entre o interior e o exterior do edifício?”, interrogou, salientando que as igrejas e catedrais são “propriedade do Estado na França”. “Como é que um sacerdote pode escolher por conta própria a decoração interior de uma catedral que pertence ao património universal da humanidade e está a ser reconstruída com doações provenientes de todo o mundo todo?”.
Mas no meio de toda esta controvérsia, o aspecto que certamente mais contribuirá para aumentar o prestígio quase mitológico do monumento prende-se com a forma como os carpinteiros familiarizados com as técnicas de construção medievais acabaram por ter um papel essencial numa recuperação que, a princípio, muitos julgavam impossível. Estes artífices a quem foi confiada uma das mais exigentes tarefas no processo de recuperação da catedral provam a importância de se confiar nesses espíritos dedicados a empreendimentos tidos como risíveis, esses que têm uma devoção por formas anacrónicas e que preferem habitar o vasto cemitério de processos condenados à obsolescência pela marcha de progresso actual. Estes espíritos vivem em contradição com as fantasias algo sórdidas de desenvolvimento e os planos de constante aumento da produtividade que caracterizam esta época na sua perseguição de uma miragem que faria do homem um ser pós-histórico. Por agora, no entanto, a humanidade vai-se reforçando nestes gestos de desobediência, esses que permitem restabelecer elos que pareciam perdidos, e infundir elementos de intrusão ou ruptura do presente por algo fora de tempo, pelos fantasmas do que a modernidade não pôde eliminar inteiramente. Assim, anima-se toda essa carga espectral, permitindo-nos reviver episódios que persistem como destroços dos séculos, fragmentos de uma História antiga, sedimentos de idílios e conflitos, do mesmo modo que, depois da devastação de uma orgulhosa cidade, as crianças brincam com as pedras dos monumentos derrubados, gigantescas cabeças de animais, todos esses símbolos, esses anjos e demónios em tensão na alma humana, e que acabam espalhados por terra e, para os miúdos, exercem ainda um fascínio vivo e ameaçador.
E é neste contexto que os líderes do Castelo Guédelon actuam como contrabandistas de ficções e modos de vida remotos, mantendo aberta uma passagem para o ano 1253, sustentando os rituais de uma forma de se ligar ao passado que é, sobretudo, uma forma de evadir-se das extorsões dos juízos e do regime de servidões a que nos força este império da produtividade 24/7. O mais comum entre nós é persistirem encenações litúrgicas que enfatizam os aspectos mais torpemente fantásticos, esses modos de necrofilia da memória, as feiras medievais que não se distinguem de parques temáticos e oferecem uma perspectiva grosseira do passado a gerações que primam pela ausência de memória e consciência, e que são, por isso, o público ideal de recriações amorfas e incolores, sem pecado e sem felicidade, inocentes e ocas. Mas ali, numa vasta clareira na floresta no norte da Borgonha, há um esforço sério no sentido de recuperar com toda a fidelidade possível certos aspectos da vida quotidiana no século XIII. O projecto Guédelon foi idealizado como um exercício de “arqueologia experimental” há 25 anos. Se o chão é o céu da História, ali, em vez de escavar, a ideia foi erguer sobre o solo os edifícios do passado, usando apenas as ferramentas e métodos disponíveis na Idade Média e, sempre que possível, recorrendo a materiais de origem local. Mas se os carpinteiros estavam dedicados ao eco de um fragor distante, a essa relação viva com o que foi, numa reviravolta inesperada, estes artífices de Guédelon viram-se a ascender sem querer, graças à suas capacidades tão particulares, a um papel vital na restauração da estrutura e da alma da catedral de Notre-Dame. E, para lá da utilidade que se descobriu nas suas competências, esta forma de recreio através dos séculos, viu subitamente estes garotos crescidos a assumirem também um papel político, demonstrando a pura força vital, demoníaca porque tranquilamente inalterável, épica como a natureza, desses saberes perdidos, e ainda que ignorante da reflexão de valores em causa, antes que acabem por fim devolvidos à sua realidade original de proscritos, não há como negar que estes carpinteiros sabem algo que falta ao nosso tempo: o que é preciso para reinstituir uma ordem que tenha como principal valor a duração.
Depois de várias empresas que concorreram para tomar parte nas obras de recuperação de Notre-Dame terem precisado de recorrer a carpinteiros treinados em Guédelon, espera-se que o Castelo venha a ser reconhecido como uma escola que prova a vitalidade das técnicas usadas há séculos. Ao The Guardian, Stéphane Boudy, membro de uma pequena equipa de carpinteiros que se formaram no castelo, onde trabalha desde 1999, explicou como o corte manual de cada viga – uma única peça de uma única árvore – respeita o “coração” da madeira verde que lhe confere força e resistência. “Temos 25 anos de experiência no corte, esquadria e derrube de madeira à mão”, diz ele. “É o que fazemos todos os dias há 25 anos. Há pessoas de fora que podem estar a fazê-lo agora, mas o que vos garanto é que, em algum momento, todos passaram por aqui para aprender como se faz. Se este lugar não existisse, talvez os especialistas tivessem dito: não, não é possível reproduzir o telhado de Notre-Dame. Mas nós provámos que era. “Isso não é apenas nostalgia. Se o telhado de Notre-Dame durou 800 anos, é por causa destas técnicas. Não há coração na madeira de serração”, remata.
O castelo de Guédelon atrai anualmente cerca de 300 mil visitantes e tem vindo a ganhar cada vez maior relevo, nomeadamente ao ser destacado numa série de documentários da BBC de 2014, Secrets of the Castle. Uma das co-fundadoras do projecto, Maryline Martin diz que o ferreiro do castelo foi contratado para fazer os machados que cortarão a madeira para Notre-Dame, e que os carpinteiros devem treinar outros para trabalhar na catedral. “É altamente prestigiante para nós que Notre-Dame seja restaurada por muitos artífices que aprenderam o seu ofício em Guédelon. Somos uma empresa privada perdida na floresta e que não recebe dinheiro público. Trabalhamos com muitos órgãos de investigação públicos, mas são muitos aqueles que descartam aquilo que aqui fazemos, tomando-nos como um mero parque temático”, disse Martin ao The Guardian. “Agora, ao fim de 25 anos, somos os únicos que entendem e são capazes de fazer o que deve ser feito, e depois dão-se conta de que não vendemos a nossa alma ao diabo. Os nossos artífices irão participar nas obras em Notre-Dame de uma forma ou de outra, mas quando este estiver terminado não vamos trocar a floresta por Paris. Continuaremos aqui o nosso trabalho de trazer de volta o século XIII.”
“A estrutura do telhado era extremamente sofisticada, e a sua recuperação exigia que fossem usadas técnicas avançadas para os séculos XII e XIII”, conta Frédéric Épaud, especialista em madeira medieval, ao Observer. Membro do comité científico de Guédelon e do comité que supervisiona a reconstrução de Notre-Dame, Épaud explica que voltar ao passado para recuperar saberes e técnicas de forma a construir o futuro não é sinal de um desejo de nostalgia. “Estudei as técnicas do século XIII por muitos anos e aprendi que, se respeitarmos a forma interna da árvore, as vigas durarão 800 anos. Guédelon é o único lugar na França, e acredito que na Europa, onde se constroem este tipo de estruturas de telhado em madeira. Todos aqueles que não achavam que era possível não conheciam Guédelon.” Mas para que o resultado final seja o esperado, Épaud vinca que as coisas não devem ser apressadas. “A insistência de Macron em que a catedral seja reaberta até 2024 é idiota. Estamos a falar de uma catedral, não devemos ter pressa e temos dinheiro para fazê-lo da maneira certa. Se nos apressarmos, corremos o risco de ficar mal feito e algo se perder. Infelizmente, temo que Macron não entenda isso.”