Por João Henriques, Investigador Associado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa, Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico e Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris
Resumo
Um ano volvido sobre a tomada da capital do Afeganistão, Cabul, pelas forças talibãs, movimento político e religioso ultraconservador, que viria a culminar com a reintegração do Emirado Islâmico do Afeganistão, o balanço da sua governação é verdadeiramente desastroso, à luz de uma permanente agressão aos Direitos Humanos, sobretudo, os das mulheres, e de uma economia que caminha rapidamente para o colapso.
Tudo isto tem vindo a acontecer na sequência da retirada precipitada das forças ocidentais instaladas no território ao longo de duas décadas, sob mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas, na convicção de que o país não voltaria a servir de santuário para as organizações terroristas internacionais. O certo é que esta súbita retirada da presença ocidental está a provocar o seu preocupante ressurgimento naquele território asiático. Não será, pois, difícil vaticinar que sem a inevitável ajuda internacional, os actuais líderes afegãos continuarão longe de alcançar tal objectivo.
Para desgraça de alguns povos, a competição entre potências pela hegemonia global é mais forte, de nada servindo os dramáticos gritos das sociedades martirizadas e os insistentes apelos das Nações Unidas, convenientemente ignorados por alguns Estados, que orientam agora as suas atenções para outras latitudes alegadamente mais interessantes sob o ponto de vista geostratégico.
Análise
No passado dia 15 deste mês de Agosto completou um ano sobre a tomada de poder no Afeganistão pelas forças talibãs, que entraram em Cabul sem qualquer tipo de oposição, culminando desta forma o seu regresso à liderança do país vinte anos depois, dando lugar ao ressurgimento do Emirado Islâmico do Afeganistão.
Naquela altura, o Presidente norte-americano, Joe Biden, justificava a retirada das forças militares do território pelo enfraquecimento da Al Qaeda após a eliminação do seu carismático líder, Osama bin Laden, e pelo acordo alcançado com os talibãs, na capital do Catar, em Fevereiro de 2020, com base na promessa de que o território afegão jamais voltaria a converter-se num santuário do terrorismo internacional, a partir do qual pudessem resultar sérios prejuízos para os interesses do Estado norte-americano e dos seus aliados. Transcorrido um ano sobre a sua chegada ao poder, é tempo de ser feito um balanço, necessariamente breve, da governação talibã.
Desde que reassumiram o poder, em 15 de Agosto de 2021, os Talibãs quebraram múltiplas promessas de respeito pelos Direitos Humanos, impondo severas restrições em particular aos direitos das mulheres e raparigas, para além de reprimirem sistematicamente os meios de comunicação, e de recorrerem à tortura e eliminação sumária dos críticos e opositores[i].
De acordo com um relatório da ONU[ii], a Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão (UNAMA, da sigla em inglês) foram identificadas graves violações dos Direitos Humanos cometidas pelas novas autoridades afegãs, incluindo execuções sumárias, maus-tratos e desaparecimentos forçados de antigos membros das Forças de Segurança Nacional, para além de detenções e prisões arbitrárias de jornalistas, defensores dos Direitos Humanos e manifestantes.
O relatório refere ainda a criação de uma série de decretos dos talibãs sobre os direitos das mulheres e raparigas que resultaram em "severas restrições aos seus direitos básicos, resultando na sua exclusão da maioria dos aspectos da vida quotidiana e pública", a par de uma profunda deterioração da liberdade religiosa, com a quase extinção das pequenas comunidades hindu, sikh e cristã. E tudo isto vai acontecendo mesmo depois das autoridades talibãs se terem comprometido a “proteger todos os grupos étnicos e religiosos”.
Já no plano securitário, a precipitada retirada norte-americana acabaria por dar protagonismo aquele que é considerado o grupo mais perigoso do Afeganistão – a rede Haqqani -, que controla Cabul, apoiada num enorme complexo bélico. Esta situação preocupa seriamente a China que não vê forma de negociar com os talibãs a entrega dos militantes Uigure, muçulmanos que habitam predominantemente a região de Xinjiang, no noroeste da China, e que são considerados pela liderança chinesa como separatistas violentos, alegadamente ligados à Al Qaeda.
Da sua parte, a Rússia, que estabeleceu contacto directo com os Talibãs, em 2017, continua na expectativa quanto às reais intenções dos novos senhores de Cabul. O Kremlin tem revelado alguma preocupação relativamente à propagação do extremismo religioso e do intenso tráfico de ópio nas regiões fronteiriças.
Entretanto, surgem alertas provenientes das agências de inteligência norte-americanas relacionados com um recente recrudescimento da actividade da Al Qaeda e do ISIS-K (Estado Islâmico da Província de Khorasan), seriamente determinados em actuar fora do território afegão, o que tem levado a própria ONU a acusar a liderança talibã de nada fazer para conter tais avanços, alegadamente pela estreita ligação dos talibãs a alguns movimentos terroristas.
Na verdade, o Afeganistão continua a oferecer excelentes condições logísticas e estratégicas para o terrorismo salafista internacional. A Al Qaeda, em particular, beneficia da cumplicidade de um regime amigo, com o qual tem uma relação histórica, sobretudo com os elementos da rede Haqqani. Esta relação é reforçada por laços familiares, muitos deles por via do matrimónio. Ainda assim, para alguns membros da liderança talibã estas parcerias são entendidas como potenciadoras de uma intervenção internacional no seu território.
Certos do que significa a ameaça terrorista proveniente do Afeganistão, as autoridades norte-americanas parecem entender, sem que tal signifique uma garantia de êxito, que um dos caminhos a seguir passará por trabalhar em conjunto com a liderança talibã por via de uma rápida assistência económica e humanitária.
A este propósito, esta a ser divulgada a intenção da administração norte-americana, talvez impulsionada por algum sentimento de culpa, de dar curso a conversações sobre o desbloqueamento de alguns biliões de dólares em activos afegãos no estrangeiro, o que claramente ajudará a reerguer e estabilizar a colapsada economia afegã e a crise humanitária em curso. As próprias Nações Unidas advertiram que quase metade dos cerca de 40 milhões de afegãos enfrenta “fome aguda”, situação que se agravará com a chegada do Inverno[iii].
Apesar de possuir uma vasta riqueza mineral, o Afeganistão não dispõe de infraestruturas que possam promover a sua normal exploração, sobretudo numa altura em que a ajuda internacional foi praticamente interrompida[iv]. Neste momento, o país está mergulhado numa profunda crise económica e humanitária, registando uma diminuição efectiva do Produto Interno Bruto (PIB). Já o PIB per capita afegão, de acordo com a World Population Review, é, actualmente, de 2.390 dólares. A grave situação da sociedade afegã levou mesmo peritos das Nações Unidas a concluir que já no ano em curso 97 por cento dos afegãos poderá ficar abaixo do limiar da pobreza.
A título de curiosidade, refira-se que, por ocasião da evacuação militar ocidental, um inquérito realizado pelo Pew Research Center[v], em Agosto de 2021, revelaria que 54 por cento dos cidadãos norte-americanos afirmaram que a decisão de retirar as tropas americanas do Afeganistão era a decisão correcta, ao passo que 42 por cento a consideraram errada. A nível partidário, 64 por cento dos republicanos rotulou a decisão como errada. No mesmo inquérito, 69 por cento dos adultos norte-americanos afirmaram que os Estados Unidos falharam em alcançar os seus objectivos, e que o controlo talibã do Afeganistão constitui uma séria ameaça para a segurança dos Estados Unidos.
Considerações Finais
Um ano após a retirada das forças ocidentais do Afeganistão, as piores expectativas sobre o cumprimento das promessas por parte da nova liderança afegã acabaram por se confirmar. Talvez por isso, o reconhecimento formal dos talibãs, enquanto governantes legítimos do país, tarda em chegar, o que tem merecido por parte dos líderes afegãos a acusação de ser a administração norte-americana que continua a bloquear o processo, arrastando consigo a restante Comunidade Internacional. A tudo isto não é alheio o facto de, na prática, os talibãs continuarem a dar cobertura aos terroristas da Al Qaeda, justificando a inquietação generalizada, sobretudo dos Estados vizinhos, com destaque para a China.
O Ocidente parece obedecer a uma hierarquia de interesses, valorizando, assumidamente, as prioridades ditadas pelas disputas geostratégicas. Nesse sentido, o Afeganistão é, agora, considerado um país de pouca importância estratégica tanto para os Estados Unidos como para qualquer dos seus aliados, que parece não terem, ainda, aprendido com a História sobre a inaplicabilidade de modelos de cultura ocidentais a povos com identidades bem diferentes. Daí o seu permanente fracasso.
No primeiro aniversário da tomada do poder no Afeganistão, os Talibãs, acompanhados pelas falanges jihadistas de todo mundo, celebram o que consideram ter sido uma vitória sobre as forças ocupantes. É caso para perguntar se o Ocidente terá, igualmente, motivos para celebração.
[i] HUMAN RIGHTS WATCH, 11 de Agosto de 2022
[ii] ONU INFO, 20 de Julho de 2022
[iii] REUTERS, 22 de Agosto de 2022
[iv] THE CONVERSATION, 31 de Agosto de 2021
[v] https://www.pewresearch.org/fact-tank/2022/08/17/a-year-later-a-look-back-at-public-opinion-about-the-u-s-military-exit-from-afghanistan/?utm_source=Pew+Research+Center&utm_campaign=4bce2f8586-EMAIL_CAMPAIGN_2022_08_18_03_52&utm_medium=email&utm_term=0_3e953b9b70-4bce2f8586-400492933