A infância foi, em tempos, uma coisa meio descolada, muito longa e que já formava as crianças numa disciplina essencial, que era a paciência, a capacidade de encontrarem motivos com que se entreterem para escapar à sensação de serem esfoladas pelo tédio. Hoje começa a parecer estranho, mas não era invulgar os miúdos dedicarem-se a contar carros nalguma estrada que lhes rasgasse o quotidiano. E, para muitos de nós, era um deslumbramento de todo o tamanho ver passar um carrão. Pôr os olhos num Ferrari era motivo de festa, e alguns de nós íamos ao ponto de decorar as especificações técnicas, saber esse jargão e recitá-lo como se fosse uma ode à nossa vida futura com o desejo de ir à caça de horizontes profundos. Alguns ainda se lembram do Ferrari F40, que chegou ao asfalto em 1987, e que é tido como um dos melhores supercarros da história. Foram produzidas 1311 unidades do F40, que contava com painéis da carroçaria em material compósito, chassis tubular em aço e um motor de oito cilindros colocado a 90 graus com dois turbos a debitar 478 cv e 577 Nm. E o engenheiro que ficou conhecido como o «pai do Ferrari F40», Nicola Materazzi, morreu esta semana, no dia 23 de agosto, aos 83 anos.
Quando os miúdos ficam à janela a contar carros ou deitados na cama de noite a ver a luz dos faróis projetar-se no teto, o ronco dos motores entra em sintonia com o desejo de se alforriarem, fazerem-se à estrada. E um outro sinal de perda do horizonte, são esses miúdos vingando-se nos viadutos, a atirar pedras aos carros da autoestrada. Assim, participar no desenho e criação dos carros que mais fazem os putos sonhar significa, em certo sentido, trabalhar com a engenharia da própria infância e dos sonhos. E Materazzi parecia ter consciência do seu enorme privilégio, tendo-se distinguido numa indústria que está cheia de egos gigantescos, sendo um tipo bastante discreto, e que preferia não dar muito nas vistas, para não distrair o público daquilo que era essencial: a máquina. Este engenheiro italiano foi dos homens que mais fez para moldar o conceito de ‘supercarro’ ainda nos seus anos de formação, e depois deu ao asfalto essa veloz força de fascínio que marcou gerações.
Nascido em Caselle, perto de Nápoles, em 1939, Materazzi estudou nesta cidade e acabaria a dar aulas na universidade antes de se decidir a abandonar a vida académica na febril atmosfera dos anos 1960, em que o forte ambiente de contestação e os movimentos de estudantes, deixaram aquele mundo virado do avesso. A Lancia ofereceu-lhe um emprego, e ele mudou-se para norte, fixando-se em Turim, onde trabalhou sob o comando do grande engenheiro Francesco De Virgilio. Materazzi foi um dos pioneiros da tecnologia de turbo compressor, e ajudou a desenvolver, em 1977, o lendário Stratos de ralis, tanto a nível de motor, chassis e aerodinâmica. Nas duas décadas que passou na Lancia, ajudou ainda a desenvolver as versões de estrada do Flavia e do Fulvia, mas depois, trabalhou num carro para a Formula Dois car e simultaneamente integrou a equipa que estava a desenvolver o magnífico BMW M1 Procar, a série de apoio à Fórmula 1 de uma marca que levou muitos pilotos de F1 da época a conseguirem destaque nas competições.
Certo dia recebeu um telefonema de Enzo Ferrari, que o tranquilizou em relação à possibilidade da administração da Fiat vir a intrometer-se no seu trabalho, assegurando que não teria de responder a mais ninguém senão a ele. Ferrari conseguiu deste modo cativar o sr. Turbo para a sua equipa, e Materazzi melhorou drasticamente o motor do carro 126C F1 de 1981, e foi uma peça-chave para que a Ferrari se tornasse sinónimo de domínio absoluto no asfalto, com a marca a conquistar os títulos de construtores de F1 em 1982 e 1983.
Supervisionou ainda o desenvolvimento do 288 GTO, originalmente concebido como carro de rally para o Grupo B, mas que logo viria a ser reaproveitado e posto nas estradas quando a FIA cancelou a série após vários acidentes fatais e crescentes preocupações com a segurança. Depois do sucesso do 288 GTO como carro de estrada, Enzo Ferrari quis contar com Materazzi para levar as coisas a um outro nível, e foi esse o impulso que levou ao F40, o último carro assinado pessoalmente por Il Commendatore e uma aposta que viria a ser a salvação comercial para a empresa que ficou numa situação bastante difícil após a sua morte em 1988.
Inicialmente, a Ferrari tinha previsto fabricar apenas 400, mas a produção acabaria por ultrapassar as 1.300 unidades no final. «Eu estava nervoso e relutante com a proposta do F40 porque já tinha muito trabalho», lembrou Materazzi numa entrevista à revista Wheels. «Só aceitei porque Enzo me permitiu progredir por conta própria, sem perder tempo em reuniões e ficar a assistir ao moroso processo de tomada de decisões». Ainda que o prazo fosse bastante curto, aquele era um projeto que devia satisfazer as ambições dos seus construtores, e o facto é que o F40 é ainda hoje amplamente considerado um dos maiores feitos da Ferrari, tendo sido desenvolvido em pouco mais de um ano, por uma equipe que trabalhou 24 horas por dia, 7 dias por semana. No final dos anos 1980, Materazzi fartou-se de ter de aturar os «tipos cinzentos» da Fiat, como os chamava, e decidiu deixar a Ferrari. Chegou mesmo a colocar um anúncio manifestando a sua disponibilidade para embarcar em novos projetos numa revista automóvel italiana. Entrou para os quadros da Cagiva, e, no início dos anos 1990, mudou-se para a fábrica da Bugatti em Campogalliano, tendo assumido as funções de diretor técnico do projeto do EB110 GT de 1991 e do mais potente EB110 SS de 1993. Depois disso, já neste século, desenvolveu o B Engeneering Edonis, com componentes que sobraram na fábrica abandonada do EB110.
Além de ter sido um lendário construtor destas máquinas de coser o fôlego entre o sonho e os horizontes, Nicola Materazzi era um ávido leitor e bibliófilo, tendo reunido uma biblioteca de 12 mil volumes, dos quais pôde ainda desfrutar nos últimos anos de vida, já retirado na sua casa em Salerno, perto de Nápoles.