Howard Carter andava há oito longos anos a dirigir escavações no Vale dos Reis, em Luxor, na esperança de encontrar um tesouro que parecia só existir na sua imaginação. Tratava-se de um trabalho duro que tinha de ser feito no inverno, dado que, na estação quente, o mercúrio podia chegar com facilidade à marca dos 50oC. As buscas, mesmo não tendo sido completamente infrutíferas, haviam ficado sempre aquém das expectativas. Segundo Maspero, o grande egiptólogo francês, tudo o que havia de importante para descobrir no Vale dos Reis já tinha sido descoberto. E o financiamento de Lorde Carnarvon estava a esgotar-se. Esta seria a última campanha.
Até que, a 4 de novembro de 1922, entre as ruínas de uma escavação abandonada, um dos homens de Carter tropeçou acidentalmente numa laje de pedra escondida pela areia. Desobstruída, a laje revelou-se um degrau. E, à medida que se retirava a areia, depois desse apareceram outros degraus, num total de 16. A escadaria descendente ia dar a uma porta. Mesmo sendo o egiptólogo inglês um homem com nervos de aço, gerou-se uma expectativa enorme.
«O dia seguinte (26 de novembro) foi o dia dos dias, o mais maravilhoso que alguma vez vivi, e certamente não posso esperar viver outro igual», escreveu Carter num relato publicado logo em 1923, The Discovery of the Tomb of Tutankhamen. «Ao longo da manhã os trabalhos de limpeza continuaram, forçosamente a um ritmo lento, por causa dos objetos delicados que estavam misturados com o enchimento. Até que, a meio da tarde, dez metros abaixo da porta exterior, encontrámos uma segunda porta selada, uma réplica quase exata da primeira. As impressões do selo neste caso eram menos distintas, mas ainda reconhecíveis como as de Tutankhamon e da necrópole real».
Cada vez mais ganhava força a esperança de Carter, que muitos consideravam infundada, de que o túmulo do jovem faraó se encontrava algures ainda por localizar no Vale dos Reis. Teria aquele golpe de sorte precipitado o achado? «Ali estava a porta selada, e atrás dela a resposta para a pergunta».
Mas muita coisa podia ter acontecido nos mais de três mil anos que tinham transcorrido desde a morte de Tutankhamon. O relato continua: «Os detritos que obstruíam a parte inferior da porta foram removidos com uma vagareza desesperante, ou pelo menos assim nos pareceu enquanto observávamos, até que finalmente tivemos toda a porta diante de nós. O momento decisivo tinha chegado. Com as mãos trémulas abri uma pequena brecha no canto superior esquerdo. Escuridão e espaço em branco, até onde uma vara de ferro podia alcançar, mostrou que tudo se encontrava vazio, e não preenchido como a passagem que tínhamos acabado de desobstruir. Fizemos testes de velas como precaução contra possíveis gases contaminantes e, em seguida, ampliando um pouco o buraco, inseri a vela e espreitei lá para dentro, enquanto Lorde Carnarvon, Lady Evelyn e Callender esperavam ansiosamente ao meu lado para ouvir o veredicto. Ao início não conseguia ver nada, o ar quente que escapava da câmara agitava a chama da vela, mas, à medida que os meus olhos se acostumaram à penumbra, detalhes da sala emergiam lentamente da névoa, estranhos animais, estátuas, e ouro, por toda a parte o brilho do ouro. Por um momento que deve ter parecido uma eternidade aos outros que ali estavam, fiquei mudo de espanto, e quando Lorde Carnarvon, incapaz de aguentar mais o suspense, perguntou ansiosamente: ‘Consegue ver alguma coisa?’, tudo o que consegui dizer, à custa de muito esforço, foi: ‘Sim, coisas maravilhosas’. Então, alargando um pouco mais o buraco, para que ambos pudéssemos ver, inserimos uma lanterna elétrica».
Conflituoso e irascível
O que o famoso arqueólogo nunca revelou, nem no seu livro nem por qualquer outro meio, é que, antes da cerimónia oficial de abertura do túmulo, a 29 de novembro, ele próprio já o havia visitado em segredo. Mas um livro agora publicado a propósito do centenário da descoberta – Tutankhamun and the Tomb that Changed the World, de Bob Brier – revela que Carter não só já tinha lá estado como aproveitou para se apoderar ilegitimamente de alguns artefactos.
«Desde há muito que existem suspeitas sobre o comportamento de Carter, que era, de acordo com várias das pessoas que trabalharam com ele, um homem conflituoso e de comportamento irascível», explica à LUZ Inês Torres, investigadora do Centro de Humanidades da FCSH (Universidade de Lisboa), e autora do livro Como é que a Esfinge Perdeu o Nariz? E outras curiosidades sobre o Antigo Egito (ed. Planeta). «Na verdade, a grande maioria dos indivíduos que compuseram a equipa arqueológica que escavou o túmulo de Tutankhamon tiveram, em diferentes momentos, problemas com Carter, o que levou à saída de vários elementos desta equipa original. Em 1947, vários anos após a morte de Carter, Alfred Lucas, um dos poucos membros da equipa arqueológica que trabalhou no túmulo de Tutankhamon do princípio ao fim, escreveu um artigo onde indica que Carter teria entrado secretamente na câmara funerária do monarca egípcio logo após a sua descoberta. Lucas era um químico que trabalhava para o governo egípcio e que tinha uma vasta experiência na análise de antigos materiais e equipamentos egípcios», acrescenta a egiptóloga. O artigo de 1947, publicado na revista científica Annales du Service des Antiquités de l’Égypte, denunciava que «Carter, Carnarvon e a filha deste, Lady Evelyn, entraram secretamente na câmara funerária de Tutankhamon através de um buraco feito por ladrões durante a Antiguidade, buraco este que Carter posteriormente selou, tendo admitido isto a Lucas», continua a investigadora. «Ora, naturalmente, é impossível dizer se, durante esta entrada secreta na câmara funerária de Tutankhamon, Carter retirou objectos do túmulo do jovem rei para si mesmo, ou se desviou artefactos durante a escavação deste complexo funerário (as autoridades egípcias parecem ter ponderado esta possibilidade, como diz o artigo do The Guardian). O que é certo é que vários objectos provenientes do túmulo de Tutankhamon acabaram por ser encontrados na posse de museus e de coleccionadores privados, pelo que alguém teve, forçosamente, que os retirar do túmulo em segredo e de os vender ou oferecer aos interessados. Por exemplo, o Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, apesar de não divulgar de que forma é que os objectos chegaram até à sua colecção, devolveu ao Egipto, em 2010, 19 peças provenientes do túmulo de Tutankhamon. E, agora, a investigação de Bob Brier revela que Sir Alan H. Gardiner, que fez parte da equipa de Carter e estudou os textos provenientes do túmulo de Tutankhamon, recebeu um amuleto pertencente a Tutankhamon como presente do próprio Carter! No fundo, tudo parece indicar que Carter teve uma participação activa na remoção ilegal de peças arqueológicas do túmulo de Tutankhamon e na sua venda ou doação a outrem», conclui Inês Torres.
O arqueólogo e o aristocrata
O mais novo dos 11 filhos do artista Samuel John Carter e de Martha Joyce, Howard Carter nasceu em 1874, perto de Norfolk. Por ser uma criança frágil e adoentada, recebeu grande parte da sua educação escolar em casa e logo muito novo mostrou ter herdado do pai, que se especializara na representação de cenas com animais, o temperamento artístico. Essa faceta ganharia relevo durante uma pequena peregrinação familiar à terra onde os pais tinham nascido. Numa visita a Didlington Hall, a mansão onde os Amherst haviam reunido uma notável coleção de antiguidades egípcias, Carter ficou logo cativado pelas peças e fez uma série de desenhos. Impressionada com o talento do jovem, Lady Amherst providenciou que ele integrasse uma campanha de escavações no Egipto dirigida por um amigo, em 1891.
Com apenas 17 anos Carter, então um aspirante a pintor, pisava pela primeira vez o solo do país das pirâmides e aos 25, dada a sua competência excecional, era nomeado inspector de Monumentos para o Alto Egipto, cabendo-lhe a responsabilidade de supervisionar escavações e restauros tanto na antiga Tebas (Luxor) como no Vale dos Reis.
Entretanto, num desses felizes acasos da história, o seu destino haveria de cruzar-se com o de um rico aristocrata inglês com quem viria a formar uma dupla imbatível.
Sete anos mais velho do que Carter, George Herbert, 5.º Conde de Carnarvon, «era uma personalidade que só poderia ter surgido em Inglaterra, um misto de desportista e colecionador, cavalheiro e viajante mundial, um realista na ação e um romântico no sentimento», escreveu C. W. Ceram no clássico Deuses, Túmulos e Sábios. «Em jovem, frequentava assiduamente lojas de antiguidades, e mais tarde tornou-se colecionador de desenhos e gravuras antigas. […] Aos 23 anos, altura em que já lhe calhara em sorte uma vasta fortuna, fez uma viagem à vela à volta do mundo. O terceiro automóvel licenciado em Inglaterra foi o seu, e conduzir a alta velocidade tornou-se para ele uma obsessão». De forma pouco surpreendente, em 1900 um acidente numa estrada alemã deixou-o gravemente ferido e afetou-lhe
Irreversivelmente os pulmões Para escapar aos rigores do inverno inglês, «em 1903 foi pela primeira vez ao Egipto em busca de um clima ameno e enquanto lá esteve visitou as escavações de vários expedições arqueológicas. […] Em 1906 começou a suas próprias escavações. Nesse mesmo inverno, apercebendo-se das deficiências do seu próprio conhecimento, foi aconselhar-se com o Professor Maspero, que lhe recomendou o jovem Howard Carter como ajudante».
No ano seguinte já trabalhavam juntos. Com a sua experiência, competência e conhecimento acumulado, Carter revelou-se um auxiliar precioso. Além disso, ajudava Carnarvon a adquirir antiguidades que este depois este levava para a sua casa em Inglaterra, nada menos do que o imponente Highclere Castle, a mansão celebrizada pela série Downton Abbey.
«Howard Carter, paralelamente à sua actividade egiptológica, era um conhecido art dealer de antiguidades egípcias: na verdade, vários museus europeus e norte-americanos adquiriram peças egípcias para as suas coleções através de Carter, que também mantinha negócios com clientes privados», explica Inês Torres. «Ora, naturalmente, essas antiguidades egípcias têm de surgir de algum lado, têm que ser removidas do seu contexto arqueológico para serem vendidas a museus e a indivíduos com posses para as comprar. Muitas dessas antiguidades foram removidas de escavações arqueológicas (com ou sem conhecimento dos seus directores, dependendo dos casos); outras foram removidas do seu contexto por indivíduos que se depararam com achados arqueológicos e os venderam para proveito próprio».
Um dos clientes privados de Carter era Calouste Gulbenkian, o milionário e colecionador arménio que acabaria por estabelecer-se em Lisboa, onde hoje se podem ver algumas peças excecionais adquiridas justamente através do arqueólogo inglês. Naquela época, «existiam pessoas que não viam qualquer problema em comercializar antiguidades (como Carter) e outras que viam esse comércio como problemático e nocivo (como o próprio governo egípcio, que tentou, em diversos momentos, pelo menos desde 1835, pôr um fim à exportação desenfreada do seu património, em grande maioria para o Ocidente)», aponta a investigadora. «Este negócio de antiguidades egípcias era, muitas vezes, apelidado de ‘estudo’ ou ‘investigação’, mas a verdade é que essa narrativa foi utilizada para legitimar e articular o domínio europeu do Egipto, em particular por França e Inglaterra, mas para benefício do Ocidente em geral. O estudo do Antigo Egipto foi uma parte importante do projecto colonial europeu».
Os tesouros resgatados do túmulo de Tutankhamon ao longo de meses deixaram o mundo de boca aberta. Só a máscara funerária, em ouro maciço, pesava mais de dez quilos. Mas havia milhares de outros objetos para o jovem faraó usar no outro mundo. E todos de uma beleza ofuscante.
A par e passo desse deslumbramento, porém, começava a crescer o mito sombrio de uma ‘maldição’. Segundo o folclore popular, furioso com o facto de terem perturbado o seu eterno descanso, o jovem faraó estaria a vingar-se dos responsáveis pelas escavações.
Ceram fez um apanhado da questão nas páginas de Deuses, Túmulos e Sábios: «Se algum episódio desencadeou a lenda da ‘maldição dos faraós’, muito provavelmente foi a súbita morte de Lorde Carnarvon. Quando faleceu, em 6 de abril de 1923, após uma batalha de três semanas com os efeitos de uma picada de mosquito, as pessoas começaram a falar sobre punições vindas do reino espiritual que se abateram sobre os blasfemos. Manchetes como ‘A Vingança dos Faraós’ começaram a aparecer, com subtítulos a anunciar uma ‘Nova Vítima da Maldição de Tutankhamon’. . .
‘Segunda Vítima’. . . ‘Terceira Vítima’ . . . ‘Décima Nona Vítima’, e assim por diante. A morte desta décima nona vítima foi relatada da seguinte forma: “Hoje, Lorde Westbury, de 78 anos, saltou da janela do seu apartamento de sétimo andar em Londres e teve morte instantânea. O filho de Lorde Westbury, que foi secretário de Howard Carter, o arqueólogo das escavações de Tutankhamon, foi encontrado morto em novembro passado em sua casa, embora parecesse estar de perfeita saúde quando foi para a cama. A causa exata da morte nunca foi determinada’». Uma explicação possível para algumas das mortes misteriosas seria uma doença desconhecida que se mantivera ao longo de séculos no escuro da câmara funerária e atacava aqueles que a tinham violado.
Os jornais falavam de mais de duas dezenas de vítimas da dita ‘maldição’. Mas Carter, o principal culpado de perturbar o sono do faraó, permanecia estranhamente incólume. Ele próprio, aliás, reputava as histórias dos jornais como «ridículas», e o facto é que sobreviveu mais de 16 anos à descoberta do túmulo, vindo a morrer tranquilamente no início de março de 1939, no seu apartamento em Londres.
Mas, tal como o jovem faraó cujo túmulo escavou, também o célebre arqueólogo acabou por ver o seu repouso ser perturbado. A ‘maldição dos faraós’ que não o atingiu em vida chega agora com cem anos de atraso. A carta inédita de Alan Gardiner, um especialista na tradução de hieróglifos, para Carter, revelada pelo livro de Bob Brier, vem definitivamente mostrar a sua responsabilidade direta na retirada de artefactos do túmulo de Tutankhamon.
«O amuleto whm que me mostrou foi sem dúvida roubado do túmulo de Tutankhamon», escreveu Gardiner, depois de conferenciar com o diretor do Museu Egípcio do Cairo, o inglês Rex Engelbach. Antes disso, Carter havia negado ser essa a proveniência do pequeno objeto. No melhor pano cai a nódoa, e a comunidade de egiptólogos não hesita em condenar a atitude do grande arqueólogo. E quanto à sua memória, fica ou não manchada?
«Howard Carter era uma figura multifacetada», nota Inês Torres. «Por um lado, a sua minúcia e atenção ao detalhe permitiram que a escavação do túmulo de Tutankhamon fosse uma das melhores documentadas do princípio do século XX, o que nos permite hoje ter acesso a informação absolutamente crucial para a nossa interpretação do túmulo e dos artefactos aí depositados; por outro lado, o seu comportamento para com os seus colegas era bastante repreensível, assim como é condenável a sua atitude para com os artefactos egípcios que estudava e pelos quais era responsável. Como se vê pela reacção de Gardiner na sua carta a Carter, a remoção ilícita de objectos de uma escavação arqueológica não era vista com bons olhos por toda a gente, mesmo nessa altura». E hoje ainda pior.