Acreditem se quiserem. Ou não acreditem e eu fico aqui como que a escrever para o boneco cheio de leitores desconfiados em meu redor: o Olaria Atlético Clube-Associação Atlética Caldense dia dia 7 de setembro de 1972 foi um dos jogos mais lendários da história do futebol de todos os tempos. E digo lendário porque marcou o fim da carreira profissional de uma lenda. Bem sei que, nos dia que correm, qualquer perna-de-pau é mítico e qualquer rebenta-canelas é um génio saído da lâmpada de Aladino. Sinais dos tempos. Exige-se pouco a quem calça umas chuteiras. As palavras ficaram baratas, abaixo de tostão (não de Tostão, esse também entrou na lenda), e os elogios são tão prolíficos como um casal de coelhos bravos a fabricarem laparotos a torto e a direito. Nanja que exista por aí gente com o descaramento divino de um Alencar do Eça capaz de falar do Olaria e do Caldense como dois dos grandes clubes do Brasil. Mas, pelo caminho, a gente interrompe a prosa e grita: pára! E é de parar. Há 50 anos e três dias, o Olaria tinha um número 7 de fazer inveja a qualquer Flamengo, Liverpool, Inter de Milão ou Real Madrid. Chamava-se Manuel Francisco dos Santos e, dez anos antes, tinha ganho um Campeonato do Mundo praticamente sozinho. Era Manuel Francisco dos Santos, nome ao jeito do português da mercearia do Morro dos Cabritos, mas o povão chamava-o de Garrincha e isso, convenhamos, faz uma certa diferença. Estava à beira de fazer 40 anos, tinha uma barriga bastante proeminente, não conseguia mais partir naquela repentina serpentina de dribles, mas era Seu Mané, Seu Mané Garrincha, e ainda havia quem não tivesse medo de desembolsar 12 mil cruzeiros para ver jogar o assustador mamífero. Foi o que aconteceu com a Caldense que quis o Olaria (com Garrincha) para a comemoração do seu 47.º aniversário. Pagou e não bufou. E encheu o campo de gente vinda até de Coxipó da Ponte só para ver o velho Garrincha fazer aquele truque do faz que vai mas não vai e vai mesmo, apesar de já não ser efetuado a 300 mil quilómetros por segundo, como no Mundial de 1958, na Suécia, quando o enorme Nelson Rodrigues soltou a frase sonora: «Pô! Isso aí não existe!».
No meio da festa havia um fulano tristonho, de cenho franzido. Era o Hildo. O treinador tinha-lhe dito: «Você vai marcar Mané nem que seja à base da paulada!» Depois o Hildo contou, no final: «Paulada que nada! Eu ia lá dar paulada no Garrincha?! O cara era meu ídolo. Só faltava fazer vénias à frente dele. Tinha uma ginga nos pés de deixar a gente louco. O que vale era estar já velhote e eu ainda ser muito jovem. Deu para aguentar».
Jota Lopes, também do Caldense, médio-centro, viveu um momento sem igual no Estádio Coronel Cristiano Osório: «Estava encantado. Era o Garrincha! Mal saiu da cabina foi atacado por um enxame de jornalistas das rádios e televisões. Ficou aí falando para os microfones, tranquilão, sorrindo. Gostava de ser centro das atenções. O povo, excitado, aplaudi-o generosamente de pé. E foi só isso. O fantasma de Garrincha foi substituído pelo seu companheiro Carlos Antônio. Mais palmas. E adeus».
O anjo
Foi Vinícius de Moraes que o apelidou de Anjo das Pernas Tortas – eram as duas dobradas para o mesmo lado dos joelhos para baixo. Quando surgiu para treinar no Botafogo, vindo lá dos cafundós de Pau Grande, o méico do clube riscou na sua ficha clínica: «Incapaz para jogar futebol!». Já Nilton Santos, o grande craque da equipa da Estrela Solitária, depois de ter levado um avacalhamento dos antigos no jogo treino em que Mané lhe passou por três vezes por debaixo das pernas, suplicou: «Contratem já o garoto! Não quero voltar a jogar contra ele!».
Foi por esse jeito inacreditável de ver um moço aleijado fazer o impossível, que Vinícius desatou o nó de um soneto: «A um passe de Didi, Garrincha avança/Colado o couro aos pés, o olhar atento/Dribla um, dribla dois, depois descansa/Como a medir o lance do momento/
Vem-lhe o pressentimento; ele se lança/Mais rápido que o próprio pensamento/Dribla mais um, mais dois; a bola trança/Feliz, entre seus pés – um pé-de-vento!/
Num só transporte a multidão contrita/Em acto de morte se levanta e grita/Seu uníssono canto de esperança/
Garrincha, o anjo, escuta e atende: – Goooool!/É pura imagem: um G que chuta um O
Dentro da meta, um 1/ É pura dança!».
A despedida de Garrincha dos relvados não foi premeditada. Fora contratado para ser a personagem de mais meia-dúzia de partidas rentáveis para o Olaria. Mas, quando saiu de campo para que Carlos Antônio entrasse, o seu joelho estava mais cheio de que a própria bola de futebol que pontapeara. A Caldense aproveitou para aplicar uma goleada dolorosa no seu adversário: 5-1!
Catorze (ou quatorze, tanto faz) anos antes, Nelson Rodrigues compôs um hino aos Três Minutos Mais Incríveis da História do Futebol. Brasil-União Soviética, segunda ronda da primeira fase do Campeonato do Mundo da Suécia, dia 15 de junho de 1958. Garrincha foi de tal modo Garrincha que nunca mais ninguém teve a ousadia de querer imitar Garrincha. «Com esse nome cordial e alegre de anedota Manuel dos Santos tomou conta da cidade, do Brasil e, mais do que isso, da Europa. Creiam, amigos: o jogo Brasil x Rússia acabou nos três minutos iniciais. Insisto: nos três minutos já o seu Manuel, já o Garrincha, tinha derrotado a colossal Rússia, com a Sibéria e tudo o mais». E assim começava a odisseia de Nelson sobre o Anjo das Pernas Tortas. «Mas o meu personagem não acredita em empate e disparou pelo campo adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando outro e consta, inclusive, que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de Rasputin. Amigos, a desintegração da defesa russa começou exatamente na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o espanto imenso dos russos diante deste garoto de pernas tortas, que vinha subverter todas as conceções do futebol europeu. Como marcar o imarcável? Na sua imaginação impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas e concluía: ‘Isso não existe!’. E eu, como os russos, já me inclino a acreditar que, de facto, domingo Garrincha não existiu. Foi para o público internacional uma experiência inédita. Realmente, jamais se viu, num jogo de tamanha responsabilidade, um time, ou melhor, um jogador começar a partida com um baile. Repito: baile sim, sim, baile! E o que dramatiza o facto é que foi baile não contra um perna-de-pau, mas contra o time poderosíssimo da Rússia. Só um Garrincha poderia fazer isso. Porque Garrincha não acredita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se tivesse jogado contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a rainha Vitória, o Lord Nelson e a tradição naval do adversário. Absolutamente. Para ele, Pau Grande, que é a terra onde nasceu, vale mais que toda comunidade britânica. Com esse estado de alma, plantou-se na sua ponta para enfrentar os russos. Os outros brasileiros poderiam tremer. Ele não e jamais. Perante a plateia internacional, era quase um menino. Tinha essa humilhante sanidade mental do garoto que caça cambaxirra com espingarda de chumbo e que, em Pau Grande, na sua cordialidade indiscriminada, cumprimenta até cachorro». Eis-nos perante uma das mais belas prosas da crónica desportiva. Ainda tantos anos antes daquele momento, em que sob os aplausos de todos os que enchiam as bancadas do Estádio Coronel Cristiano Osório, estralejaram de palmas e enrouqueceram de gritos sem saberem que estavam a dizer adeus a Manuel dos Santos para sempre.