Paquistão. Os países desenvolvidos têm de pagar pelas alterações climáticas

As devastadoras cheias que submergiram um terço do Paquistão são associadas às nossas emissões de gases com efeito de estufa, reacendendo o debate sobre o pagamento de indemnizações. “O acordo feito entre o norte e o sul global não está a funcionar”, denunciou a ministra do Clima paquistanesa. Mas não há grandes esperanças de que…

Ghulam Fatima, de 27 anos, está a pagar o preço das alterações climáticas. Como tantos milhões de paquistaneses, esta camponesa de Jalal Thebo, na província de Sindh, viu a sua casa devastada por cheias recordistas, que deixaram mais de um terço do país debaixo de água. Fatima perdeu o seu sustento, viu os preços dos alimentos disparar – não é coincidência que as regiões mais afetadas fossem também aquelas com maior produção agrícola, dado serem as mais irrigadas – e agora está inundada de dívidas, à semelhança do próprio Paquistão. Agora, sabendo-se que estas cheias foram potenciadas pelas alterações climáticas, muitos começam a perguntar quem vai pagar a conta. E levantam-se cada vez mais vozes a exigir que países desenvolvidos, historicamente os que mais emitiram gases com efeitos de estufa, sejam responsabilizados pelos estragos. Em vez de responder apenas com os habituais empréstimos de emergência do Fundo Monetário Internacional (FMI), cedidos a troco de estritos programas de austeridade, ou da China, que tem insuflado a dívida pública de países como o Paquistão. 

O certo é que, neste momento, pessoas como Fatima não sabem o que fazer. “A nossa colheita inteira de cebolas morreu”, explicou esta camponesa, que arriscara tudo para comprar menos de meio hectare de terra. “Não sei como vamos pagar o enorme empréstimo de 75 mil rupias paquistanesas”, o equivalente a menos de 330 euros, acrescentou o marido, Mashooq Ali Khaskheli, dezoito anos mais velho, ao Dawn. “Não durmo há muitos dias”, admitiu. “Não aguento ver os meus filhos dormir com fome. E está a acontecer com demasiada frequência”.

Já para Sherry Rehman, ministra para o Clima do Paquistão, é impossível aceitar que os países desenvolvidos assobiem para o lado perante tragédias como a de Fatima e Khaskheli. Recordando que o Paquistão produziu uns meros 0,4% das emissões de CO2 desde 1959, contudo é considerado o oitavo país mais vulnerável às alterações climáticas, segundo o Global Climate Risk Index. Sendo que os Estados Unidos emitiram 21,5%. “Obviamento o acordo feito entre o norte global e o sul global não está a funcionar”, queixou-se Rehman, em entrevista ao Guardian. “As injustiças históricas têm de ser ouvidas e o clima tem de estar na equação, para que o peso do consumo irresponsável de carbono não recaia sobre nações próximas do equador, que obviamente não conseguem criar uma infraestrutura resiliente por si mesmas”, exigiu a ministra paquistanesa. 

Entre os próprios países desenvolvidos já há alguma noção de que é preciso pagar para que economias emergentes abdiquem de utilizar os combustíveis fósseis que potenciaram o desenvolvimento do hemisfério norte. Daí que na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2009, em Copenhaga, se tenha chegado ao compromisso de obter 100 mil milhões de dólares anuais para financiar a transição verde dos países em desenvolvimento até 2020.

Contudo, esta promessa climática foi quebrada, como tantas outras. Em 2019 apenas se tinha alcançado os 79,6 mil milhões de dólares anuais (mais de 78 mil milhões de euros). As projeções indicam que o objetivo só será atingido em 2023, três preciosos anos depois, mesmo assim ficará muito aquém do necessário, segundo os cálculos da ONU. Isto numa altura em que pequenas nações insulares estão em risco de desaparecer, secas extremas cada vez mais frequentes causam fomes em África ou Ásia – ainda há dois anos uma praga de gafanhotos oriundos do Iémen, surgida devido a condições atmosféricas anormais, devastou o Corno de África e o sudoeste asiático, numa catástrofe quase bíblica – e épocas de incêndios cada vez mais devastadores se tornam-se regra. Além de cheias devastadoras como a que viveu o Paquistão. 

Estima-se que só o custo desta tragédia sem precedentes ultrapasse largamente os dez mil milhões de dólares (perto de 9,8 mi milhões de euros). Afetando mais de 33 milhões de paquistaneses, causando, pelo menos, uns 1300 mortos – a expectativa é que os números subam brutalmente, havendo ainda muitos desaparecidos que nunca serão encontrados – e obrigando no mínimo 660 mil pessoas a viver em campos de refugiados, dependentes da ajuda do Governo, das forças armadas ou de doadores internacionais.  

As condições são tão terríveis que Fatima, mesmo temendo passar fome na sua aldeia, tendo as paredes da sua casa rachada e em risco de ruir prefere lá ficar do que ir para um campo de refugiados. “O meu marido levou-me lá para ver e vi mulheres sentadas a tirar piolhos dos cabelos umas das outras”, relatou. “Não havia sanitas, não havia privacidade para tomar banho, eles comem e fazem as necessidades no mesmo sítio”. 

As dificuldades financeiras de Fatima e Khaskheli tornaram-se ainda maiores quando uma das suas filhas, de oito anos, contraiu malária, obrigando-os a pedir um empréstimo de duas mil rupias paquistanesas (menos de nove euros) a um familiar para pagar a viagem de autocarro até ao hospital público na cidade de Tando Allah Yar. Não são os únicos que enfrentam este tipo de doenças, estando a decorrer um surto de malária e diarreia entre os sobreviventes das cheias, com mais de 134 mil casos de diarreia e 44 mil casos de malária só em Sindh, anunciaram autoridades locais, este domingo.

Para dirigentes paquistaneses como Rehman, que visitou a Sindh, uma das províncias mais afetadas, a escala desta tragédia evidencia que os países desenvolvidos têm de pagar pelas suas emissões de gases com efeito de estufa. “Aquela área inteira parece como um oceano sem horizonte. Nada como isto foi visto antes”, relatou a ministra do Clima paquistanesa. “Arrepia-me quando as pessoas dizem que isto são desastres naturais. Isto é a era do Antropoceno, estas são tragédias causadas pela humanidade”.

Além da catástrofe humanitária, até o património histórico do Paquistão está em risco. Incluindo as ruínas de Mohenjo-daro, que fascina os historiadores, um dos poucos vestígios de uma civilização que desapareceu misteriosamente enquanto o Egito e a Mesopotâmia ainda floresciam. Esta antiga cidade, declarada Património da Humanidade pela UNESCO,  pode não ter sido diretamente atingida pelas cheias, mas “vários grandes muros que foram construídos há quase 500 anos colapsaram devido à chuva destas monções”, espantou-se Ahsan Abbasi, curador desta escavação arqueológica, em declarações ao Guardian. Isto apesar da construção de fossos de drenagem ser considerado dos grandes feitos da civilização Mohenjo-daro.

Monções e glaciares derretidos Os cientistas não têm dúvidas quanto à relação entre as alterações climáticas e estas cheias catastróficas. O que existiu foi uma conjugação entre precipitação extrema estas monções – sendo que o Paquistão, um país sobretudo desértico, está na ponta oeste da região das monções, apenas sendo afetada esporadicamente por estas – com uma onda de calor em maio e junho, que derreteu glaciares  no montanhoso norte paquistanês. Esta não deverá ser a última vez que uma tragédia destas se sucede, tendo o Paquistão se transformado num potencial hotspot de cheias extremas devido às alterações climáticas. 

“Esta confluência de ingredientes ocorrerá mais frequentemente num mundo mais quente”, avisou Luke Harrington, investigador de alterações climáticas na Universidade de Waikato, na Nova Zelândia, à CNBC. “Também sabemos que os mesmo sistemas de tempestade produziriam menos chuva se a concentração atmosférica de dióxido de carbono estivesse menos fixa em níveis pré-industriais”, acrescentou Harrington. “Como tal, sabemos que níveis impactantes de chuvas das monções irão ocorrer mais frequentemente”.

Apesar da ligação entre as nossas emissões de gases com efeitos de estufa e a escala da tragédia do Paquistão serem evidentes para os cientistas, não há grande que esperança que sejam pagas quaisquer compensações por países desenvolvidos – aliás, mesmo os tais 100 mil milhões de dólares anuais prometidos na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2009 formalmente não são uma indemnização, mas um simples apoio à transição verde. É que a questão é que o norte global não quer criar esse precedente jurídico, avaliou Melanie Pill, investigadora do Instituto para o Clima, Energia e Solução de Desastres da Universidade Nacional Australiana, num artigo de opinião no Conversation. 

“Se países ricos começassem a pagar indemnizações poderia tornar-se um buraco sem fundo”, explicou a investigadora, lembrando que aquilo que boa parte daqueles a que hoje chamamos países desenvolvidos acumularam essa vantagem financeira e económica através de séculos de exploração colonial. “É por isso que o tópico de compensações é carregado e disputado. Apesar da sua popularidade entre alguns líderes de países em desenvolvimento e defensores da justiça climática, as dificuldades legais envolvidas e as potenciais somas de dinheiro envolvidas significam que não é provável que alguma vez isso ganhe tração”. 

Contudo, não só países como o Paquistão talvez nunca recebam compensações, como boa parte dos seus rendimentos continua a ser canalizado para países desenvolvidos, através do pagamento de juros da dívida, estando programado que sejam pagos o equivalente a 12,5 mil milhões de dólares (mais de 11 mil milhões de euros) pelo Governo paquistanês até ao final do ano. Entre os principais credores, com mais de 30% da dívida soberana do Paquistão, está aquele que também é dos maiores poluidores, a China, que não tem dado grandes indicações de querer restruturar as dívidas o seu aliado, mesmo perante a atual situação de catástrofe.