O que separa as democracias liberais do iliberalismo ‘democrático’ não é a ausência de eleições, a proibição de partidos ou o regresso da censura, mas sim a quebra de confiança que se cria entre o poder e quem, na altura própria, o legitimou.
Ora não pode haver confiança que sobreviva à mentira, ao engano, à ilusão ou ao truque que são, mais cedo ou mais tarde, facilmente desmascarados, qualquer que seja o dimensão eleitoral que suporte o poder em exercício.
Como a natureza, a sociedade também tem horror ao vazio, e, mais cedo que tarde, encontrará formas para corrigir a situação e regressar ao equilíbrio.
Por isso é que, nas democracias liberais o poder não se concentra, exclusivamente, num setor, estando definidos vários ‘pesos e contrapesos’ (cheks and balances) que, ao serem exercidos, vão reequilibrando e revigorando o sistema.
Em Portugal esses centros de compensação existem com funções, poderes e modalidades de intervenção bem definidos, mas só se tornam úteis para o reforço da democracia liberal se atuarem e atuarem tempestivamente.
Pensar que a democracia se esgota em eleições periódicas e não é preciso mais nada é uma completa aberração.
Nas atuais circunstâncias políticas são principalmente duas as instituições democráticas que tem um dever reforçado de controlo e regulação: o Presidente da República e a Comunicação Social.
A oposição tem, claro, o seu papel, mas joga normalmente com as regras do poder e dificilmente faz a diferença e o Parlamento com uma maioria absoluta e minorias, uma e outras escolhidas exclusivamente nos aparelhos partidários (ao que parece cerca de 40000 pessoas ou seja 0,4% da população) não consegue definir uma agenda própria e autónoma dos partidos donde emana.
O que se passou nos últimos dias, a propósito do anúncio de medidas de apoio às famílias e às empresas, é um bom cenário para compreender se o exercício da política está a ser feito no quadro exigente das democracias liberais ou se, pelo contrário, segue as regras do eleitoralismo mais criticável.
A frágil economia do país, agravada nos últimos sete anos com a ausência de reformas em setores vitais como a saúde, a justiça e, sobretudo, a segurança social (herança da ‘geringonça’) vai sofrer fortes impactos negativos e passar por enormes dificuldades.
Mas ninguém pode afirmar, com crédito, que algumas das causas para esta degradação sejam da responsabilidade do atual poder executivo (a debilidade económica, a partir de 2011, também não era da responsabilidade do Governo de então), mas exatamente por isso há uma exigência a fazer e deveres a respeitar que podem ser sintetizados numa única palavra: VERDADE.
Há poucas semanas o Presidente Emmanuel Macron, anunciou à sociedade francesa que tinham terminado os tempos de abundância. Fê-lo de resto em circunstâncias políticas mais frágeis do que as que ‘condicionam’ o Governo português e terá perdido, no curto prazo, alguma base de apoio. Mas fê-lo em obediência a um dever republicano que tem marcado o seu ministério e que, infelizmente, parece ausente no nosso país.
Em Portugal, pelo contrário, continua a negar-se a evidência, mantendo o país entretido com jogos de poder? Quem será quem e quando no Ministério da Saúde, agora que a ex-ministra saiu e se espera que Costa diga ‘que andou 4 anos a lutar por aquilo que entendeu ser a sua verdade’ ou com a renovação do Karma ‘a culpa é do Passos’, nas suas várias versões, registos e declinações.
A encenação burlesca usada na apresentação das últimas medidas de caráter social, para travestir um corte brutal de pensões de 1000 milhões de euros anuais (nos tempos do Passos estiveram para ser ‘só’ 600) numa operação compensatória da inflação vigente, é um exercício criticável e especialmente reprovável.
Exercício criticável e especialmente reprovável a que o Sr. Presidente da República, enquanto pilar da democracia liberal e garante da verdade e da transparência que tem de ser dominantes em todos os comportamentos políticas nesta fase difícil da nossa vida coletiva, não reagiu, em tempo útil, como podia e devia fazer.
Felizmente o mesmo não sucedeu com a comunicação social que foi, desta vez, rápida e certeira a denunciar e desmontar a narrativa governamental que procurou esconder a austeridade com contas certas e que continua incapaz de reconhecer que há um problema de sustentabilidade da segurança social.
Muitos dirão que as ‘narrativas’ recentes são práticas normais da vida política e usadas, recorrentemente, por todos aqueles que nela participam. E há até os que pensam e agem, seguramente inspirados nos ensinamentos do Príncipe de Maquiavel, que o sucesso na política exige perversidade. Talvez, mas isto que é mau em períodos de estabilidade, torna-se suicida em períodos de profunda turbulência.
Com um primeiro-ministro relativamente distante, se calhar a pensar em quase impossíveis cargos europeus, torna-se mais difícil compreender a ausência sistemática do Sr. Presidente da República que tem uma arma poderosíssima (a palavra) que usa muito, mas quase sempre mal.
Num cenário de grave crise económica é necessário que se reflita sobre as mudanças profundas que estão a ocorrer na política europeia, com o crescimento dos radicalismos, nomeadamente os de direita, pois Portugal, ou corrige a tempo, ou não vai ficar de fora.
Não será este o momento adequado para finalmente ‘ouvirmos’ o Presidente da República? Não é esse o seu dever?