Casualmente, Joe Biden transformou décadas de política dos Estados Unidos quanto a Taiwan. Tem vindo a pôr em causa a chamada “ambiguidade estratégica” – ou seja, a ideia que Washington dá a entender que poderia ir ao auxílio deste território chinês no caso de Pequim ordenar uma invasão, sem nunca se comprometer com isso para evitar uma guerra mundial – ao assegurar que defenderia a ilha. Enquanto assessores da Casa Branca se apressam a explicar à imprensa, nos bastidores, que afinal não era bem isso que Biden queria dizer. Seja uma das sua típicas gafes ou não, alguns saúdam o Presidente, considerando que um posicionamento mais firme dos EUA quanto a Taiwan poderia dissuadir a China de atacar. Para outros isso não é possível, estando o regime chinês a planear à escala de décadas, como costume, já decidido em invadir. E aí, havendo envolvimento direto dos EUA, estaríamos condenados a uma guerra entre potências.
Ainda o mês passado tivemos uma pequena amostra da fúria da China, no rescaldo da visita de Nancy Pelosi – a líder Presidente da Câmara dos Representantes é o rosto da ala mais belicosa do partido de Biden – a Taiwan. Tendo Pequim reagido cercando a ilha, lançando mísseis sobre esta e colocando o seu exército nas praias, como que pronto a desembarcar. No entanto, a expectativa é que o grande risco de uma invasão venha a longo prazo.
“Os riscos disso tornam-se maiores, parece-nos, quanto mais para a frente nesta década estivermos”, avaliou nessa altura o diretor da CIA, Bill Burns, no Fórum de Segurança de Aspen. Talvez um compromisso dos EUA em defender a Taiwan alterasse as contas dos estrategas Xi Jinping, à semelhança da desastrosa prestação russa na Ucrânia. No que toca a esse conflito, mostrou a Pequim que “não obténs vitórias rápidas e decisivas com força avassaladora”, considerou o diretor da CIA. Contudo, isso “afeta menos a questão de se a liderança chinesa pode escolher usar força para controlar Taiwan daqui a uns anos, mas como e quando o fariam”.
O gigante e o porco-espinho A quarta vez que Joe Biden se comprometeu em defender Taiwan, enquanto Presidente, também foi a mais clara. Questionado pela CBS sobre se prometia colocar tropas americanas na ilha, em caso de um ataque chinês, não apenas em providenciando armamento e financiamento, como se vê na Ucrânia, Biden respondeu com um rotundo “sim”. Reforçando que isso significaria ter “forças dos EUA, homens e mulheres dos EUA”, a defender Taiwan, o último reduto dos nacionalistas chineses, derrotados pelos comunistas de Mao Tsé-Tung na guerra civil chinesa, em 1949.
“Estas últimas declarações de Bidensão as mais drásticas e menos ambíguas que ele fez”, nota António Caeiro, autor de quatro livros sobre a China, o mais recente dos quais é Os Retornados de Xangai (Tinta da China, 2022). “No fundo, o que significa é que cada vez há menos ambiguidade estratégica”, explica o jornalista. Mas mostra-se otimista, apesar do ultraje de Pequim, que garantiu que “nunca toleraria qualquer atividade com o objetivo de separar o país”.
“Da parte da China, a situação não se alterou muito. O partido comunista chinês defende a reunificação pacífica com Taiwan, seguindo também aquela formula que foi adotada para Hong Kong e Macau”, relembra Caeiro. “E só admite usar a força em caso de ingerência estrangeira ou se declararem independência”, relembra, admitindo, contudo, que quanto a ingerência estrangeira, “num certo sentido pode-se dizer-se que os americanos já fazem isso”.
Aliás, desde 1979 que, por lei, o Congresso americano estabeleceu o dever de Washington em fornecer apoio na área da Defesa a Taiwan, o que se traduziu no envio de armamento cada vez mais avançado, sendo notório a aposta em mísseis terra-ar ou terra-mar ao longo dos últimos anos. Tornando esta ilha, com pouco mais de metade do tamanho de Portugal e só 24 milhões de habitantes, uma espécie de porco-espinho.
Aliás, no início deste mês o Pentágono aprovou a venda do equivalente a 1,1 mil milhões de euros em armamento a Taiwan. E recentemente o Senado americano anunciou a oferta de 6,5 mil milhões de euros em apoios militares a este território chinês, marcando a primeira vez que os EUA financiam diretamente a compra de armas pelos taiwaneses.
A ideia é “aumentar o custo de tomar a ilha pela força, de maneira a que se torne um risco demasiado alto e incansável”, justificou o senador democrata Robert Menendez, o proponente deste pacote. “Temos de antecipar uma futura crise e dar a Xi Jinping razões para pensar duas vezes quanto a invadir ou coagir Taiwan”, acrescentou o seu colega republicano Jim Risch.
A questão é que, simultaneamente, a China também faz as suas preparações para um eventual conflito. Há muito que Xi promete modernizar totalmente as suas forças armadas até 2027, centenário do estabelecimento do seu Exército de Libertação Popular. Tendo havido um significativo aumento de 7,1% no seu orçamento da Defesa, anunciado em março deste ano, batendo o equivalente a 230 mil milhões de euros anuais. Isto quando a China já conseguiu bater a poderosa marinha americana em termo de número de navios, ainda que não em qualidade, apontam analistas.
Mesmo excluindo o risco de um apocalíptico confronto nuclear entre Washington e Pequim devido a Taiwan, os americanos talvez não estejam tão preparados como pensam sequer para apoiar militarmente os taiwaneses numa guerra convencional.
“A guerra moderna é prodigiosamente cara. Destrói algumas das mais requintadas e caras criações que as sociedades modernas conseguem produzir. Consome quantidades épicas de mísseis e munições de artilharia. Pode destruir aviões, tanques e navios difíceis de substituir”, lembrou o historiador Hal Brands, professor da Johns Hopkins School of Advanced International Studies, num artigo de opinião na Bloomberg. Isso ficou claro com a guerra na Ucrânia, em que “uma coligação do mundo livre, liderada por uma superpotência global, teve dificuldades em responder às necessidades do Governo de Kiev sem esgotar perigosamente os seus próprios arsenais”, explicou o professor. E “defender Taiwan seria muito mais custoso”.