"A situação está cada vez pior, já compramos resmas. Este problema resulta do subinvestimento no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e não é compreensível, num momento em que se cobram milhões de euros em impostos, que continue a haver problemas como este", começa por explicar Maria João Tiago, médica de família e dirigente do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), em declarações ao Nascer do SOL, menos de 24 horas depois de esta estrutura ter lançado um comunicado intitulado de "Médicos de Família dispostos a lançar crowdfunding para resmas de papel".
"O problema é generalizado com Lisboa e Vale do Tejo a liderar esta situação. Não é a primeira vez que alertamos para esta situação: não há tinteiros, não há lâmpadas… Mas nada é feito. As Administrações Regionais de Saúde empurram para as direções executivas e isto tem cada vez mais gravidade", desabafa a assistente graduada na USF São João da Talha, em Loures. "Somos a favor da desmaterialização, mas nem tudo pode ser: por exemplo, a baixa tem de ser entregue no emprego em papel. E há doentes menos hábeis com as novas tecnologias. Há necessidade de se imprimir documentos e entregá-los aos doentes. E existe o direito do doente de ter a sua receita impressa e as pessoas com alguma idade não se orientam muito bem com os códigos recebidos por SMS. É quase anedótico não haver papel e que os médicos e enfermeiros tenham de os comprar", sublinha.
"Após semanas de utilização de papel trazido de casa pelos profissionais de saúde, perspectiva-se a necessidade de apelar aos doentes para eles mesmos trazerem o papel para as suas receitas e pedidos de exames serem impressos", lê-se no comunicado veiculado pelo SIM, sendo avançado que "um Governo que fustiga no primeiro semestre os portugueses com impostos, mais 5 mil milhões de euros cobrados em relação a 2021", não garante "o básico".
"Fazemos tanta propaganda de que está tudo muito bem mas, na prática, quem está no terreno sabe que tudo é diferente. Eu nunca comprei papel porque me impus esse limite, mas muitos colegas meus fazem-no. Desde o lançamento deste comunicado, uma doente ofereceu-me resmas de papel que já distribuí por todos os gabinetes. É inacreditável. Lançámos o 'crowdfunding' para conseguirmos material como fizemos com as viseiras no pico da pandemia", diz Maria João Tiago, frisando que a campanha de angariação de fundos "é algo irónico", à semelhança do comunicado que divulgaram, no pico da pandemia de covid-19, para conseguirem equipamento de proteção individual.
"E é isto que faz os jovens médicos não quererem estar no SNS. Ainda não concretizámos o crowdfunding, mas não sabemos quando será necessário fazê-lo. Há anos e anos que alertamos o Ministério da Saúde para este problema e tudo continua na mesma. À custa da desculpa da desmaterialização, não se compram bens consumíveis", lamenta a profissional de saúde. "Ainda não tivemos nenhuma resposta e estamos esperançosos de que haja uma mudança na forma de encarar e salvar o SNS. Se nada for feito… Estamos numa fase muito descendente. Urgentemente, tem de se olhar para o SNS como algo em que se deve investir. Somos uma população envelhecida com uma pirâmide invertida e não há hipótese de haver apenas o serviço privado. A medicina tem de ter o serviço estatal para fazer um balizamento da qualidade porque acabamos por degradar", conclui.