Fundou a plataforma NEOS com a convicção de que os fundamentos de nossa ordem social estão sob ataque. Como está a ser realizado esse ataque?
A NEOS é de facto uma alternativa cultural. Não estamos na política. Mas acreditamos que há fundamentalmente um ataque, uma crise de civilização, de fundamentos. Vou dar um exemplo muito simples. A crise da verdade. Vivemos na Europa longe da verdade. Ou seja, não percebemos que uma civilização precisa de uma cultura de defesa, que uma civilização como a europeia precisa da capacidade de produzir energia para que possamos ser autónomos. E é evidente que estar longe da verdade significa que estivemos ocupados com outros assuntos. Temos defendido o género, tentamos elevar o aborto como um direito. Ou seja, fizemos uma transição para o nada na Europa. E, então, significa que fundamentalmente nos falta um pilar que é o da verdade. Isso quer dizer que uma civilização tem que ter uma cultura de defesa, tem que ter autonomia no que se refere às suas fontes de energia e tem que ter respeito pelas instituições de dignidade pessoal. Bem, isso é o que de alguma forma entrou em crise. É por isso que acreditamos que há uma crise de civilização.
Apresentam-se como uma plataforma cultural. Mas como pode a NEOS influenciar a sociedade, a política e o espaço do centro-direita?
Bom, existindo, ou seja, em primeiro lugar é transmitir que existe essa forma de pensar as coisas na política. Não há só economia, não há só impostos, não há só gestão. Quando, de forma cruel, a Rússia decide trazer a guerra para a Europa estão a dizer que acreditam que estamos em declínio, que esta é uma civilização de fim de semana, que a única coisa que nos importa é o nosso bem-estar pessoal. Então, o que queremos é influenciar, afirmando que a vida pública é mais do que uma prioridade económica, é mais do que os impostos, que existem alguns fundamentos que estão a levar-nos a uma crise que outros já detectaram, como Putin neste caso, razão pela qual, de forma cruel e bárbara, introduziu esta guerra na Ucrânia.
Por que razão a verdade, a família e a vida humana são tão importantes como centro de tudo?
Porque essa é a base da nossa civilização. A nossa civilização não é só competitividade, são alicerces. Contar mentiras não se pode tornar um projeto político. Por exemplo, o Governo espanhol limita-se a mentir, não como instrumento mas sim como projeto político. Por isso, a verdade é um pilar, mas a família é outro pilar e todas as instituições próximas à pessoa humana são outro pilar. Claro que existem muitas maneiras de ver as coisas, mas esse sentido de transcendência nas nossas vidas não pode ser negligenciado. Nem todos temos que ser crentes, mas não se pode subestimar o significado, o sentido de transcendência que está ligado a qualquer civilização. Estamos a viver uma crise em que estamos permanentemente a perder referências. Uma delas é a própria fé que não deve ser compartilhada por todos. Certamente, não será compartilhada por todos. Mas uma coisa é que nem todos a compartilhamos, outra coisa é que a desprezamos para estarmos todos os dias com uma obsessão doentia em construir uma ordem social diferente, como se fosse uma vingança em relação ao que o Ocidente vem construindo. Essa obsessão doentia pela destruição, pela substituição do que é uma ordem social, esse é o principal problema que temos. E isso leva a um certo suicídio como civilização. Isso leva ao declínio de uma civilização. Importa fazer uma reflexão que não se faz na política quotidiana em que parece que a única coisa importante é ganhar eleições, mas temos que saber que vivemos um momento muito singular. Estamos a viver o fim de uma etapa que começou após a Segunda Guerra Mundial. E estamos no processo final, um processo de desordem ou decadência, como quisermos chamar.
Acha que a guerra na Ucrânia reavivou a missão do Ocidente de proteger os valores democráticos?
Uma das razões, não sei se a única razão, mas uma das razões pelas quais Putin promoveu esta guerra cruel é porque acredita que a Europa só quer viver bem e que não tem capacidade para sofrer. E acredita que é um momento em que a Europa não vai conseguir suportar um declínio no que significa seu bem-estar. Isto significa um aumento nos preços da energia ou até mesmo falta de gás ou energia. Esta é a razão porque Putin e os seus estrategas acreditam que há uma fragilidade, que existe uma sociedade que perdeu referências, que perdeu o bom senso e que só está ali para aproveitar as suas férias, ou seja, é uma civilização de fim de semana. Isto é o que eles pensam e eu acho que essa é uma das razões para esta guerra brutal e injustificada desencadeada por Putin.
Portanto, a preservação dos valores europeus no contexto da guerra exige um rearmamento estratégico da Europa.
Certamente em todas as áreas. Temos de recuperar o sentido da verdade e temos que adotar uma política energética muito mais compartilhada. Não podemos ser tão dependentes do gás da Rússia. Não tem de ser cada país a defender as suas posições sobre o gás, temos que ter uma política muito mais europeia no domínio da energia que vá além de uma preocupação para que sejamos autónomos. Isto é, que a autonomia energética seja alcançada com a multiplicidade de fontes de energia e de países, ou seja, vários tipos de energia e muitos países que abastecem a Europa da melhor forma se não tivermos recursos naturais para sermos autónomos. No campo da segurança, temos também que investir mais dinheiro na defesa. Uma civilização precisa de defesa. Temos estado ocupados com outras questões. Precisamos de um rearmamento moral, de uma dimensão de sentido da transcendência da nossa civilização. É preciso valorizar a cultura do esforço, o sentido da família, o sentido da obrigação, não podemos estar inventando todos os dias novos e falsos direitos para nosso conforto. O conforto não pode ser o único guia das nossas vidas. Deve haver outros elementos essenciais, em que sabemos lutar, sacrificar-nos, para alcançar o bem comum. Bem, isso é o que chamo de uma regeneração. Sem dúvida que tem uma dimensão moral de primeira grandeza, mas não é apenas um rearmamento moral, também significa outra maneira de abordar a verdade dos nossos problemas. Na Europa, esquecemo-nos de que não somos um continente. Fazemos parte da Eurásia, o que acontece é que o nosso bem-estar económico fez-nos acreditar que éramos um continente. Não, temos vizinhos, fazemos parte de algo maior. Temos que ter uma noção um pouco mais verdadeira de onde estamos no mundo e também saber, reconhecer que vivemos como privilegiados no mundo. Mas isso significa que tem que haver mais esforço, mais capacidade de enfrentar problemas reais, e não procurar apenas o conforto como referência nas nossas vidas quer na esfera privada como na esfera pública.
A Comissão Europeia apresentou uma proposta legislativa que propõe limitar os rendimentos das empresas de eletricidade. Esta medida promovida pelo Partido Popular Europeu surgiu apenas 24 horas depois de o PP espanhol ter votado contra o plano de poupança de energia promovido pelo Governo. Este debate destacou a necessidade de Alberto Núñez Feijóo tecer uma rede de apoio maior na Europa?
Como disse antes, não estou na política de todos os dias, das questões específicas, o que acredito é que a reflexão tem que ser feita mais no fundo da grande questão. Por outras palavras, como conseguir, a médio prazo, no domínio da energia, mais do que apenas aumentar os impostos sobre as empresas de electricidade? Como vamos fazer um mapa de energia que tenha uma visão de toda a Europa? Que fontes de energia temos? Por que podemos pensar que na França pode haver centrais nucleares e em Espanha não? Temos que examinar as fontes de energia que nos tornam independentes ou pelo menos mais autónomos. É necessária uma reflexão mais profunda. De que gasodutos precisamos na Europa? Como podemos combinar as diferentes energias? Não existe uma concepção única. Existem muitos conceitos diferentes. A Europa não se pode dar ao luxo de ter cinco ou seis diferentes concepções de fontes de energia. Temos que ter uma concepção básica e unitária de energia. Obviamente, cada país dará mais ênfase aos recursos de que dispõe. Mas é essencial uma visão global onde a diversificação da energia seja um elemento permanente na nossa reflexão.
Por que acha necessário libertar a inteligência dos europeus de uma moda dominante de esquerda?
De esquerda e do dinheiro, não é só de esquerda. A moda dominante hoje é dominante porque consiste precisamente em desconsiderar a dignidade da pessoa, o sentido da vida, a transcendência e o valor da família. Isso começou quando o aborto foi legalizado e socialmente legitimado. Então o mal se tornou mais sofisticado, fundamentalmente, através das questões de género e da eutanásia. Portanto, é um plano tendencioso de uma moda orientada para o conforto, onde apenas o conforto é procurado. É mais confortável abortar do que não abortar. É mais confortável a eutanásia do que lutar pela vida. É mais fácil determinar o que somos com base no que queremos ser do que aceitar a realidade implacável da biologia. Ou seja, há um plano tendencioso de conforto, simplesmente para levarmos uma vida em que possamos fazer mais ou menos tudo aquilo que quisermos. É isso que está a produzir em larga medida esta crise.
Por várias vezes comparou o aborto à escravatura. Não acha que o primeiro é um direito das mulheres e o segundo é uma violência contra o direito à vida?
Eu comparo com o século XVI, quando a escravatura era uma moda dominante. Ter escravos era algo lógico, normal, aceitável, porque o importante era a prosperidade económica das plantações. A escravatura era a moda dominante no mundo anglosaxónico até que houve muitas vozes que começaram a dizer que isto não era possível, porque as pessoas são iguais. Não podemos determinar que existam escravos e não escravos com base nas capacidades de uns e de outros. Hoje a escravidão é uma aberração. Na questão do aborto, é preciso entender que a pessoa dentro de uma mãe não pertence à mãe, é outra pessoa. Instala-se no corpo da mãe, mas tem dois pais, o pai e a mãe. Não é um apêndice do corpo. Então, daqui a alguns anos, vamos perceber que essa moda dominante que parece a todos um direito, é uma aberração. Existem muitas fórmulas para impedir que se tenha um filho. Mas uma vez que se tem um filho, não somos donos dessa criança, é outra pessoa. E então não temos o direito de decidir se uma outra pessoa vive ou morre. Não pode ser um direito. Mais, quando se decide ou quando se tem um filho, esse filho não passa a ser um direito, mas sim uma obrigação. Provavelmente, em 50 a 100 anos, teremos vergonha do que esta civilização fez, porque sem dúvida, como o professor Julián Marías disse há muitos anos, o aborto é a maior tragédia que o século XX experimentou devido à sua legalização e legitimação.
O que pensa da ideia de Emmanuel Macron de equiparar o direito ao aborto a um direito identitário europeu?
Às vezes digo que a crise no Ocidente se manifesta em termos de transição. A transição é sempre a crise. Assim, nos Estados Unidos, a transição manifesta-se em termos de polarização. Nunca houve uma sociedade tão polarizada, tão fraturada socialmente como a norte-americana. A transição na Europa é uma transição para o nada. O nada significa, por exemplo, tentar incluir o aborto na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. A carta dos direitos fundamentais da Europa é identitária, é a identidade da Europa. Não é possível dizer que hoje nós, os europeus que nunca vamos considerar o aborto como um direito, não somos europeus. Não faz parte da identidade europeia. Do ponto de vista jurídico, também é um absurdo, porque é muito mais complicado modificar a carta de direitos, mas em termos políticos, é a transição do nada. Por outras palavras, incluir o aborto na identidade da Europa significa o nada. E da mesma forma que os norte-americanos, os países latino-americanos também estão a caminhar para o comunismo e para o totalitarismo. Há três transições que vivemos: na América Latina para ditaduras de esquerda, nos Estados Unidos para a polarização, e na Europa para o nada. Este é um exemplo da crise de civilização que vivemos. Não vivemos em um período após 1945, quando a Segunda Guerra Mundial marcou uma nova etapa. A história é cíclica e cada etapa dura determinados anos. Tudo o que está a acontecer é o final de mais uma etapa, isso não quer dizer que a conclusão seja uma guerra. Mas significa que vai ser algo traumático. E a guerra na Ucrânia é um aviso. Mas o que é evidente é que estamos no final de uma etapa.
Esse momento traumático de que fala pode ser o risco real de uma guerra nuclear?
A grande diferença entre o período de 1945 e os tempos que vivemos hoje é o facto de que as armas que existiam antes não tinham a capacidade de destruir o mundo. Não tinham capacidade autodestrutiva. Podiam acabar com uma nação, como aconteceu com a Alemanha e podiam causar muitos danos como aconteceu na Europa, mas não tinham essa capacidade destrutiva total. Hoje, as armas que todos os países têm no seu arsenal são capazes de destruir o mundo inteiro. Isso é simplesmente um elemento de preocupação. O que estou a dizer é um diagnóstico. O prognóstico é impossível. Não sei o que vai acontecer, não sou um profeta. O que os profetas fazem é prever, eu não sei prever, eu sei diagnosticar. Temos uma situação em que hoje temos armas capazes de destruir o mundo inteiro. Isso é um diagnóstico. Agora, não sei como essa mudança no período histórico em que vivemos se vai manifestar. Não sei qual será o trauma. Nos anos de 1914 e de 1945 do século XX foi evidente. Foram duas guerras, uma como continuação da outra, e marcaram o fim de uma etapa e abriram outra. Estamos agora no final dessa etapa. Quando falo muitas vezes em universidades ou para jovens, digo-lhe que uma das coisas que têm que entender é o momento em que vivemos. Nasci uns anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, mas esse foi o início de uma etapa. Os jovens que hoje têm 20 anos precisam de saber que estão a viver o fim de uma etapa. Sabemos que vivemos o fim de uma longa etapa porque realmente são 80 anos praticamente desde o fim da Segunda Guerra Mundial e a história sempre mostra que infelizmente o final não são anos de prosperidade. Há momentos de choque e muitos sintomas já estão a ser produzidos para não percebermos que estamos a viver o fim de uma etapa, da qual estou convencido que sairemos, mas isso não significa que não tenhamos algum tipo de trauma.
Portugal e Espanha têm sido governados nos últimos anos por coligações com a esquerda radical, com os comunistas e até com os nacionalistas no caso espanhol. Os partidos socialistas e a esquerda democrática mudaram a sua natureza?
Só me atrevo a falar de Espanha. Por respeito prefiro não falar de Portugal, porque sou ignorante, tenho muito respeito e admiro muito os portugueses. Mas vou concentrar-me em Espanha. Essencialmente, houve uma metamorfose do Partido Socialista. A partir do momento em que se faz um acordo com a ETA e com o nacionalismo extremo catalão, a natureza do partido muda e estrutura-se na chamada frente popular. Transformou-se aquilo que era um partido na república espanhola. A mesma coisa aconteceu também em meados da segunda república entre 1961 e 1966, começou como um partido socialista social-democrata, mas acabou a fazer parte fundamental de uma frente popular que nos levou à guerra civil. A mesma coisa acontece agora. A ETA, que é um projeto político de ruptura, não mudou. O que fez foi fazer com que o elemento que muda seja o Partido Socialista. É nisso que se tornou o socialismo, quando não comanda uma coligação, mas faz parte dela, acabando por ser de alguma forma sequestrado, neste caso, pelo projeto de ruptura do ETA.
Como vê a estratégia política do PP de ignorar o partido Vox à sua direita para evitar que a esquerda atribua uma associação à extrema-direita?
Na NEOS acreditamos que a solução para uma alternativa tem em conta muitos fundamentos e muitos princípios. Então, o que queremos é que os partidos políticos formem uma alternativa política, mas a melhor forma de o fazermos é simplesmente explicar a nossa oferta cultural, sobre a verdade, sobre a vida, sobre a família. Mas, ao mesmo tempo, não nos queremos envolver. Não queremos apresentar-nos no debate partidário porque perderíamos a legitimidade para poder defender uma alternativa cultural. Então queremos que haja uma alternativa cultural que não seja apenas uma alternativa ao Governo. E é claro que este diálogo necessário compreende um entendimento entre as opções políticas que podem constituir uma alternativa na Espanha.
A propósito ainda da decadência de que falava, a morte da Rainha Isabel II abre um novo cenário com novos desafios no Reino Unido. Acha que pode haver uma fratura, seja na Escócia ou na Irlanda do Norte, que agora podem tornar-se regiões ainda mais antimonárquicas?
A crise que vivemos na Europa e no mundo ocidental está em toda parte. O Brexit é uma manifestação da nossa crise, ou seja, essa fratura que, na minha opinião, foi uma tristeza, acabou por significar a confirmação de uma crise de civilização. Agora, isso não significa que, por se terem separado da União Europeia, estejam longe da crise. A crise não está na política, a crise está na pessoa. A crise não está nas exceções europeias. A crise está nos europeus. É um caminho e uma atitude de vida que está em crise. E isso também acontece no Reino Unido, onde, mais do que uma crise política, tem uma crise de uma sociedade que se tem vindo a moldar em termos de conforto. Não sei o que vai acontecer no Reino Unido, mas o que se passa hoje obedece ao mesmo quadro de crise de fundamentos, de princípios, de valores da pessoa. Essa é a decadência que muitas vezes ocorre, porque o que entra em crise é a pessoa. O Império Romano, para dar um exemplo, teve um declínio. Os romanos entraram em crise e no final provavelmente houve erros políticos, erros institucionais. Mas o que entrou em crise foi o romano. Na Europa, devemos ter capacidade para uma certa reação, uma regeneração real, moral. A crise no Reino Unido é mais uma peça da crise que estamos a viver na civilização ocidental.
E o que pode agora acontecer com a Commonwealth?
Não sei, não sou profeta. Muitas vezes nós, europeus, não percebemos que vivemos como pessoas privilegiadas e que tivemos um papel no mundo que já não temos e que precisamos de o conquistar de novo. O conceito de império acabou, a Espanha não é um império. Portugal também não é um império, apesar do poder do Brasil e de outros países. Temos que saber fortalecer a nossa civilização de outra forma e não ficar tão obcecados com o que acontece noutros lugares que, logicamente, vão ter mais independência a cada dia.