É cada vez mais claro que a mobilização militar parcial ordenada por Vladimir Putin será mais caótica e menos seletiva do que este prometeu. Até legisladores ou jornalistas de órgãos estatais russos se começam a queixar em público – apontando o dedo não ao Kremlin, claro, mas sim a administrações regionais.
Com isso cresce a fúria de muitos russos, que não querem arriscar a vida por um esforço de guerra que parece condenado, assistindo-se a sucessivos ataques a centros de recrutamento.
O desespero é tal que um jovem se imolou num centro de recrutamento, este domingo, em Ryazan, a sudeste de Moscovo, mostra um vídeo divulgado pelo jornal independente russo Novaya Gazeta. Testemunhas contaram ao canal local YA62 que o jovem, enquanto derramava líquido para isqueiro sobre a cabeça, soltava gargalhadas e gritava: “Não quero ir para a guerra”. Acabando por ficar com 90% do seu corpo coberto por queimaduras.
No dia seguinte, um homem armado com uma caçadeira de canos serrados, vestido de camuflado, foi filmado a abrir fogo no centro de recrutamento de Ust-Ilim, na distante região siberiana de Irkutsk. Um oficial, Alexander Yeliseyev, ficou em estado crítico, sendo atingido à queima-roupa logo após fazer um discurso para explicar a um grupo de recrutas que iam ser mandados para a Ucrânia, avançou o media regional Lyudi Baykala, citado pelo Guardian.
“Ninguém vai a lado nenhum”, gritou o atirador antes de disparar, tendo sido identificado como Ruslan Zinin. Este habitante local, de 25 anos, nem sequer recebera uma carta de alistamento, contou a mãe de Zinin, Marina, ao site noticioso independente Astra.
Mas estava “muito perturbado” por ter descoberto no dia anterior que o seu melhor amigo morrera em combate na Ucrânia. E ficara furioso ao saber que vários dos seus amigos receberam ordens para se apresentar no centro de recrutamento, mesmo não tendo qualquer experiência militar, apesar de Putin ter prometido que a mobilização seria parcial, aplicando-se apenas a reservistas.
Desde o primeiro momento da guerra que o Kremlin era acusado de colocar dezenas de milhares de reservistas na linha da frente na Ucrânia, apesar da legalidade dúbia disso, por se tratar de uma suposta “operação militar especial”. Agora, com a mobilização militar parcial, o regime de Putin já tem alguma cobertura legal para essa prática expandindo-a. E, para mais uma vez, de abusar desse mandato, desta vez chegando a ordenar que manifestantes contra a guerra fossem para a linha da frente, acusou a OVD-Info.
Esta ONG de defesa dos direitos humanos já registou pelo menos 15 casos de manifestantes que receberam os seus papéis de recrutamento quanto foram detidos por protestar. É uma prática que não é nova – cá em Portugal, nos tempos da Guerra Colonial, era bem sabido que muitos dos jovens apanhados quando regressavam de França, após fugirem, eram mandados para a Guiné, o teatro mais duro do conflito – e parece ter como objetivo intimidar e calar vozes dissonantes.
“Eu estava pronto para o habitual: ser detido, levado para a esquadra da polícia e ir a tribunal”, explicou Mikhail Suetin, um ativista de 29 anos, que é uma presença habitual nos protestos contra o regime em Moscovo, em declarações à France Press. “Mas dizerem-me: ‘Amanhã vais para a guerra’… Isso foi uma surpresa”, admitiu Suetin, que foi ameaçado com dez anos de prisão caso não combatesse. Entretanto foi libertado, após recusar, e espera o desfecho do seu processo.
Miséria e praxes brutais Na Rússia, o peso do serviço militar sempre recaiu sobre as populações das repúblicas mais pobres, no norte do Caucaso, na Sibéria ou nas vizinhanças da Mongólia. É destas regiões que é oriundo o grosso das forças profissionais russas, procurando aqui melhores melhores condições de vida. E estas minorias também estão desproporcionalmente presentes entre os recrutas não-voluntários.
Desde sempre que muitos russos fazem tudo para evitar cumprir o serviço militar, escapando a condições terríveis e às brutais praxes das forças armadas da Rússia, mais conhecidas por dedovshchina, qualquer coisa como “governo dos avós”. Ainda há dois anos uma reportagem do Moscow Times expunha como soldados russos eram alvos de todo o género de abusos nestas praxes, incluindo espancamentos, extorsão e até violações.
Um soldado chegou ter a sua testa cortada com uma lâmina de barbear pelos camaradas, ficando a ler-se a palavra russa para “pénis”. O jovem acabou a suicidar-se com a sua AK-47, num caso que chocou a Rússia. Outro recruta abateu a tiro oito militares, explicando que o fizera em retaliação a abusos constantes e ameaças de violação.
Quem foge a isto mais facilmente são os mais ricos. Isenções do serviço militar “podem ser conseguidas por motivos de saúde ou por estudar na faculdade”, lê-se no Economist. “Outra maneira de escapar ao recrutamento é subornar alguém. Recrutadores e médicos frequentemente vezes falsificam isenções pelo preço certo. Muitos russos de classe média pagam”.
Talvez por isso Putin tenha hesitado em anunciar uma mobilização geral, teoricamente poupando gente sem experiência militar e estudantes. “Com altos níveis de evasão do recrutamento entre as famílias mais prósperas, ao chamar aqueles com anterior experiência militar permite ao Kremlin evitar mobilizar os filhos da elite urbana”, explicou a Foreign Policy. Porque esses “provavelmente desencadeariam protestos contra a guerra que o resto do público russo”.