A pequena vila de Joane, em Braga, está em ebulição. Livrou-se finalmente de uma assombração. Depois da reportagem publicada no Nascer do Sol a 17 de setembro, sobre os abusos sexuais de menores praticados nesta terra durante décadas por um sacerdote, o cónego Fernando Sousa e Silva, muitas vítimas pontapearam o fantasma denunciando-o nas redes sociais.
Não se escondem atrás de nomes falsos e dão o rosto. Conhecem-se, apesar da diferença de gerações. E, como se tivessem aprendido uma nova lealdade, partilham uns com os outros a mesma revolta.
“Comigo aconteceu o mesmo”, dizem muitos. “É preciso arranjar mais testemunhos”, alertam outros. Todos querem o mesmo: justiça.
Flora Simões, 50 anos, juntou-se ao coro: “Só lamento que as denúncias só tenham aparecido agora. Este homem merece o pior! Mas nós, em pequenos, se contássemos aos nossos pais, ainda levávamos!”. Os relatos alheios vão e vêm como próprios. Ela reconhece-se nas mesmas memórias.
Foi num sábado à tarde. A confissão era geralmente neste dia. Tinha sete anos e nenhum conhecimento sobre as intimidades entre adultos. O cónego Fernando Sousa e Silva instalou-se em Joane no início dos anos 60. Subira na hierarquia da Igreja com rapidez. Doutorara-se em Direito Canónico em Navarra e acabaria por ocupar lugar na Cúria Arquidiocesana de Braga e no Tribunal Eclesiástico como vigário judicial.
Apesar de ser professor no seminário de Braga, era na casa do irmão, o pároco de Joane, que habitava. Aos fins de semana estava pela igreja. Na fila de devotos, Flora esperava a sua vez. Os adultos ajoelhavam-se na parte lateral do confessionário, onde uma janela rendilhada como o fundo de um coador os separa do sacerdote.
Quando chega a sua vez, o cónego manda-a entrar no pequeno confessionário. Fecha a portinhola. Deixa cair a pesada cortina púrpura. Encaixa Flora entre as suas pernas e coloca-lhe as mãos nas costas para a manter colada a ele.
Flora anda às apalpadelas na memória. Só mais espigadota, quando já andava no ciclo preparatório, descobriu de onde chegava o apetite venéreo do cónego. “No início era muito inocente para perceber o que se estava a passar. Mais tarde é que percebi que ele tinha prazer com aquilo. Perguntava se algum rapaz já me tinha tirado as cuequinhas, se me mexera no pipi, se se metera em cima de mim e se me apalpava os seios. Ao mesmo tempo, punha-me a mão no peito”.
As mulheres ainda se vestiam de luto dos pés à cabeça. A homossexualidade deixava as Igreja de cabelos em pé, a união entre uma mulher e um homem tinha de seguir os preceitos católicos e os padres deixavam muitos filhos por aí. A virgindade era um tabu. Mas, no confessionário, a sexualidade das crianças era devassada.
Flora recorda hoje todos os pormenores como se todos os anos em que teve de aguentar aquela tortura lhe tivessem sido pespontados com linha de aço no cérebro. A atmosfera era muito pesada, mal se respirava. A respiração do sacerdote era agitada. A rapariga só lhe via os joelhos e a barriga adiposa: “Sabe o que é ficar ali meia hora entalada em cima dele? Cheirava a mofo, nunca mais me esquecerei. Fiquei com uma impressão nojenta dele. Não aguento olhar para ele. Não o suporto. Entrava sem pecados, saía cheia deles. E no final ainda impunha a penitência!”.
À pergunta óbvia, responde como uma refém acabada de sair do cativeiro: “Depois de ler o seu artigo, de saber que houve denúncias feitas à Igreja que foram arquivadas, e de ler o depoimento dessas vítimas, lembrei-me de tudo outra vez e achei que também tinha a obrigação de denunciar, de me juntar aos outros. As pessoas agora já não têm medo, ele tem de ser castigado! Há uma revolta em Joane. Se perguntar aos rapazes e raparigas que nasceram depois dos 60, todos lhe vão dizer que foram vítimas dele. São às centenas”.
Nesta viagem pelo mundo digital, Flora reencontrou amigas, a sua cabeleireira e vizinhas. Como Helena Pimenta, uns anos mais velha e dona de um restaurante de referência em Joane. A mulher, que aos 18 anos tentou a sorte na Suíça e triunfou, reagiu às denúncias nas redes como se tivesse vivido sempre na expectativa de que isto viesse a acontecer um dia. Tal como Flora, pode substituir as recordações de quem agora denuncia pelas suas. “Fui uma das vítimas dessa pessoa sem princípios, espero que se faça justiça”, publicou no Facebook.
E afinal onde estava Deus quando, em menina, lhe aconteceu o mesmo? De quê e por que a castigava assim? Que mal lhe fizera?
O seu relato é cópia dos de outros. “Ele não nos deixava ir para a parte lateral do confessionário. Era o único padre que fazia isso. Fiquei com uma ideia muito errada da Igreja”, afirma hoje, com raiva na voz. O cónego, aos poucos, ia desertificando a igreja. “Quando regressei a Portugal, os meus filhos ainda eram pequenos e, quando foram para a catequese, avisei-os para dizerem à catequista que com ele não se confessavam e, se ela insistisse, que saíssem porta fora”.
Como o Nascer do Sol noticiou há duas semanas, a Diocese de Braga não ignorava o comportamento do cónego Fernando. As denúncias que entre 1999 e 2002 chegaram a D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga, caíram, porém, em saco roto. Custódio Fernandes, que durante anos com ele se correspondeu, serviu de mensageiro das vítimas de Joane, tendo-lhe enviado, nomeadamente, uma carta de uma delas em que relatava os abusos. Mas de nada serviu.
Questionado sobre o seu silêncio na altura, D. Jorge Ortiga acabou por assumir que alguma coisa teria acontecido no seu tempo. Em conversa com o Nascer do Sol, remeteu as explicações sobre o cónego Fernando para o seu sucessor: “Alguma coisa deve ter havido, penso que foi na altura da minha mudança e está tudo devidamente documentado. Quem lhe poderá falar sobre esse caso é D. José Cordeiro”.
Mas esse processo acabou por ser arquivado pela Comissão de Proteção de Crianças, Jovens e Pessoas Vulneráveis da Arquidiocese de Braga, porque o abuso em causa teria sido cometido há mais de 30 anos, estando canonicamente prescrito. Entretanto, o cónego Fernando Sousa e Silva ainda celebra e faz confissões na diocese de Braga, apenas tendo deixado o Tribunal Eclesiástico da diocese em 2019.
E enquanto a igreja se entaipa num manto de silêncio, dando os casos como encerrados, três das vítimas entrevistadas pelo Nascer do Sol já falaram com a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja, criada pela Conferência Episcopal Portuguesa e dirigida pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht.
Entretanto, nas redes sociais das pessoas ligadas a Joane, levanta-se uma tempestade violenta. Às vezes, os ânimos exaltam-se. Cristina da Cunha Machado, emigrante, mais uma vítima do cónego Fernando, ainda acredita na justiça divina.
Reagindo a outra denúncia, comenta: “Deus é grande e tenho a certeza que haverá justiça! Ele terá o que merece!”. Mas um homem, que já não acredita em notificações divinas, responde-lhe torto: “E onde estava deus no momento do ato? Que nunca o seu deus tenha que castigar alguém que fez mal a um dos seus”.
A resposta de Cristina traz acalmia: “Você tem a sua opinião e eu respeito, mas você nada sabe da minha história com essa pessoa. Cada um tem o direito de viver a sua fé como deseja! E eu pessoalmente não responsabilizo Deus por tudo o que se passa de mau no mundo”.
No diálogo que vai correndo, sentem-se as emoções descontroladas das vítimas, os picos do ódio, o regresso à serenidade. António Martins resume o que aconteceu naquela vila: “Fez isso durante décadas. Esse senhor tirou a inocência a muitos adolescentes com a treta do confesso, que não podíamos deixar de fazer, pois os nossos pais, na sua boa-fé, obrigavam-nos a ir ter com esse senhor todos os meses. É triste estarmos agora a relembrar o que foram esses tempos, mas ainda bem que alguns responsáveis pela Igreja Católica avançaram com esta investigação”.
É coisa sabida que os homens são abismos cheios de sombras.