"Ninguém acredita nisto. É um email e tenho os nomes e números da chefia. A minha mãe está no Lar Salvador Brandão, em Gulpilhares, Vila Nova de Gaia, há volta de três anos e ficam com a pensão dela. O lar é da Misericórdia de Gaia, é uma Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), financiado pelo Estado, e ficam com a pensão, os subsídios de Natal e férias. A minha mãe tem uma pensão de sobrevivência e eu e o meu irmão ainda pagamos 300 euros juntos. E ainda pago as fraldas e os medicamentos por fora", começa por desabafar, em declarações ao Nascer do SOL, João (nome fictício), que prefere não revelar a identidade para proteger a mãe, mas explica que a mesma se encontra institucionalizada há cerca de três anos por sofrer de demência em estado avançado.
"Entretanto, o Governo anunciou que os reformados vão receber o equivalente a meia pensão e o lar já me avisou que vai ficar com ela. É uma atitude repugnante. Se fosse um lar privado, ainda poderia entender: agora, uma IPSS?", questiona o filho da idosa que tem quase 90 anos. "O Estado cria aquelas instituições para ajudar os reformados e fazem isto? Enviaram um email e nem houve diálogo nenhum. A minha mãe é bem tratada, felizmente. Neste momento, é alimentada por sonda, está limpa, com a roupa da cama asseada, não posso apontar o dedo a nada", admite, esclarecendo que "há é muita sujidade no espaço exterior do lar".
Importa lembrar que, no início do mês, António Costa elucidou que a proposta que o Governo enviaria para a Assembleia da República previa as seguintes subidas: as pensões até 886 euros vão aumentar 4,43%; as pensões entre os 886 e os 2.659 euros vão aumentar 4,07% e as restantes aumentarão 3,53%. "Com o suplemento extraordinário pago já em outubro e com os aumentos agora propostos à Assembleia da República, que serão aplicados a partir de 1 de janeiro de 2023, tal garante que todos os pensionistas terão ao longo de 2023 o rendimento que teriam se fosse aplicada a fórmula de modo estrito (…) Nenhum pensionista perderá rendimento em função desta medida", disse o primeiro-ministro.
"Em maio, solicitei o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso e foi-lhe atribuída uma percentagem de 97%. Ela chegou a desidratar, há um ano, porque perdeu o reflexo de deglutição. Quando aceitei que lhe colocassem a sonda nasogástrica, veio do hospital com ela e pronto. As senhoras do lar dizem que ela já não tem reação, só quando a limpam", afirma, visivelmente triste. "E isto vai agravar-se: porque o Estado não está preparado nem há conhecimento suficientemente disponível sobre este tipo de doenças. Tenho um amigo de 65 anos que começou a esquecer-se de muitas coisas, o neurologista que o viu até achou que era cansaço e não demência. Ainda é autónomo, mas foi aconselhado a ir para um centro de dia para estimular o cérebro", observa, refletindo acerca da forma como os idosos são encarados em território nacional.
"Respondi ao diretor a perguntar se ele não tinha vergonha de me enviar um email daqueles, pouco depois de o ter recebido, na quinta à tarde, e ele não disse nada. Eu fiquei indignado e resolvi denunciar a situação, mas há outras pessoas às quais acontece isto e ficam caladas. Só aqui em Vila Nova de Gaia, há pelo menos três lares, IPSS, e estão todos sem vagas. A minha mãe esteve em lista de espera durante muito tempo", recorda, revelando que "a lista de espera é fictícia", na medida em que "a pessoa que está em primeiro lugar, imaginemos, tem uma pensão de 500 euros e a família não pode ajudar. Se outra estiver em quinquagésimo lugar, mas a família ajudar, passa logo à frente. Quanto mais paga, mais vantagens tem", sublinha.
"Quando os doentes recebem os subsídios de férias e Natal, os familiares contribuem na mesma com 300 euros e não a dobrar. Portanto, se calhar, isso faz com que não ultrapassem os tais 1000 euros [em 2014, um utente dos lares das IPSS custava em média 980 euros ao Estado e família]. "Mas estou apenas a fazer uma regra de três simples, há coisas das quais não tenho certeza", adiciona. "E a ajuda do Estado, de 300 euros, não conta: isto é, o que conta sempre é a pensão e a contribuição familiar. Uma vez, fui pagar a fatura dos produtos de incontinência e vi fraldas XL: a minha mãe veste o S. Não paguei porque reparei. De outro modo, teria tido esse gasto", assume, exemplificando uma das circunstâncias em que sentiu que aquela instituição não estaria a ser tão correta quanto deseja.
"Bom, sinceramente se me espanta?", pergunta a ativista dos direitos humanos Francisca de Magalhães Barros, a primeira pessoa a quem João fez esta denúncia. "Depois daquilo que aconteceu no lar da Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime, em Loulé, que passado uma semana já não é notícia, receber esta denúncia não me espanta nada", diz a também cronista e pintora. "A decadência de valores morais em relação aos nossos idosos tem um propósito, mesmo quando são postos em lares privados e muito bem pagos: o silêncio é endurecedor. Temos de, rapidamente, mudar este paradigma de que a velhice, ou que a terceira idade, é um fardo", frisa a jovem.
"Aproveitar-se então da sua condição enquanto idoso, lá está, para mim é um atentado aos direitos humanos. Tirar proveito, dinheiro, de algo que é uma obrigação do Estado, do que são instituições do Estado, é inacreditável. É triste. É revoltante", adianta. "No entanto, aqui ninguém fica em silêncio, e se pudermos proteger os idosos, o nosso propósito vai sendo cumprido. Lar a lar. Instituição a instituição. Injustiça a injustiça".