O que é que mais mudou, em 50 anos – desde que lançou ‘The Nine Billion Names of God’ –, no país e no mundo, e na forma como os públicos recebem os artistas?
Eu nasci em plena ditadura. Toda a minha infância e adolescência foram neste país, que era muito cinzento, muito retrógrado. A minha mãe, por exemplo, – eu vivia com pais separados – ouvia muita música clássica, mas também só havia na rádio Tony de Matos, que é dos mais marcantes. Fado nunca gostei muito, até recentemente, em que tenho começado a apreciar. Mas o público consumia essa música, dos cançonetistas, não falando de ranchos folclóricos e algumas coisas engraçadas, como o António Mafra. Na minha adolescência, quando o pessoal começou a ouvir e a tocar coisas como Elvis, Paul Anka, Beatles, The Rolling Stones… começou a haver bandas, em Portugal, mas a cantar em inglês. Excetuando, claro, o quarteto 1111, que é um caso à parte. Grande José Cid! [risos]. O pessoal não dava valor absolutamente nenhum à música feita cá. Mas isso é uma velha tradição do pessoal português. Havia essa opinião e ainda há, um bocadinho. Artistas como Maria Helena Vieira da Silva, Paula Rego ou Maria João Pires, por exemplo, são artistas que, só depois de terem tido reconhecimento internacional é que o pessoal começou a dar valor cá. É como o Saramago. O que acontece é que, até à saída do Ar de Rock, do Rui Veloso [1980], não se ouviam bandas portuguesas, nem artistas portugueses, na rádio da música das novas gerações. A partir dos anos 80, tudo mudou. Eu estava em Paris, não vinha cá há dois anos, e quando cheguei, em 1980, só se ouvia rock português. Eu ouvia e pensava: ‘Então, mas o que é que aconteceu?’ [risos]. E, de repente, houve uma viragem total. Cada vez mais o pessoal gosta da música feita cá, e há bandas que cantam em inglês, como os Blind Zero, o David Fonseca… mas o que acontece é que o pessoal vai aos concertos, compra os discos… quer dizer, hoje em dia, os discos não vendem a ponta de um corno [risos]. Mas as coisas mudaram radicalmente. Em termos de música popular, houve depois discos como o Por Este Rio Acima, do Fausto, ou a obra de José Mário Branco e Sérgio Godinho, e por aí fora.
Isso foi obra do 25 do Abril, em parte?
O 25 de Abril mudou isto tudo. É indescritível. A mudança que, rapidamente, ocorreu neste país, até na questão da música. E duma forma relativamente rápida. Eu não estava cá, estava a viver em Copenhaga, mas há pessoal que conheci só quando a gente voltou, em 1974, como o Sérgio Godinho ou o Zé Mário Branco.
Mas mesmo antes, o EP ‘A Última Canção’, de 1973, teve a mão de Ary dos Santos. A ele já o conhecia pessoalmente, então?
O primeiro EP saiu há 50 anos. É um single, em inglês que é a adaptação de um conto do Arthur C. Clarke, que se chama ‘The Nine Billion Names of God’. Esse single foi escrito por mim, num inglês um bocado académico, principiante. Na altura, eu não conseguia escrever letras em português e, através do Fernando Tordo, chego à fala com o Ary dos Santos e rapidamente começámos a trabalhar. Entretanto, tornamo-nos grandes amigos e o segundo disco em meu nome é o tal EP, chamado ‘A Última Canção’, com quatro canções: duas letras do Ary e duas letras minhas, já a imitar o mestre José Carlos Ary dos Santos.
Que memórias lhe ficam da amizade com Ary dos Santos? Eram de gerações diferentes…
Eu não me lembro quantos anos é que o Ary tinha a mais do que eu, mas tornamo-nos irmãos e era raro o dia em que não estávamos juntos. Ou em casa dele ou em minha casa, ou nos bares ou em casas de escritores como o Luís Sttau Monteiro, Natália Correia… noite, muita noite, muitos copos. No meio disto tudo, trabalhávamos um bocado [risos].
Depois veio uma viagem pelos EUA, pelo Canadá, Caraíbas…
Não, isso foi num verão… A minha mãe adorava viajar e sempre viajou. A primeira grande viagem que fiz para países estrangeiros foi aos 8 anos: Espanha, França, Holanda, Bélgica, Alemanha, Itália… tinha 8 anos. A minha mãe adorava fazer cruzeiros, e fizemos vários para a Madeira, sobretudo. Houve um cruzeiro de quase um mês que, penso que começou no Canadá, em Halifax. Depois Boston, Nova Iorque, Miami, as ilhas das Caraíbas… Fazer um cruzeiro há quem goste, há quem não goste. Eu até gosto, mas culturalmente não enriquece muito, passa-se pouco tempo nos sítios. Em Nova Iorque foram três dias, foi porreiro. Como músico, fui convidado para integrar um grupo e também fui a Montreal, Toronto, São Francisco e São José, Vancouver… mas a grande viagem foi, de facto, quando me pirei à tropa e fui viver, durante quase um ano, em Copenhaga. Aí é que foi o grande choque cultural.
Que efeitos teve essa viagem na sua música e na sua vida?
Entre 1973 e 1974, lá era muito diferente, a começar, por exemplo, por ver debates políticos na televisão… numa altura em que em Portugal só se via o Américo Thomaz e o Salazar, o Marcello Caetano… A relação entre o homem e a mulher lá também era muito diferente, numa altura em que Portugal era um país muito machista. Com essa viagem, evoluí e cresci bastante com o contacto com esse pessoal nórdico. Depois, voltei para Portugal, gravei o primeiro álbum e, dois anos mais tarde, veio o segundo. Entretanto fui embora porque o meu casamento, enfim, já tinha acabado. Não tinha filhos, nada a prender-me cá. A minha mãe rapidamente habituou-se a não saber de mim durante muito tempo [risos]. Portanto, aí foi quando fui tocar na rua, no metro, uns anos fantásticos.
Em França? Ou em Copenhaga?
Nessa altura, fomos, às vezes, à Dinamarca… íamos à Suíça, Alemanha, Inglaterra… mas a sede era Paris, o quartel-general.
Já há muitos anos que anda nisto… olhando para os primeiros trabalhos, tem uma leitura deles completamente diferente agora, comparativamente à altura?
O primeiro single, por exemplo, não está mal construído. O ‘The Nine Billion Names of God’ está engraçado. Desde a infância, adolescência, que eu estudei música. Sabia escrever para outros instrumentos e comecei a fazer arranjos para outros cantores. Há muito tempo que eu não ouvia esse single e, agora, ouvir aquilo tudo, sobretudo a minha escrita em inglês, acho que é uma canção engraçada.
Já falou do inglês duas vezes…
Foi melhorando. Tive muita experiência e é a falar, a ler e a escrever que se começa verdadeiramente a falar uma língua. O meu inglês era do liceu e das letras das canções dos gajos, e gajas, de quem gostava. Antes do Bob Dylan ouvia James Taylor, Paul Simon…
Se ouvirmos o ‘The Nine Billion Names of God’ no YouTube, nas recomendações surge logo Lou Reed. Também se identifica com este artista norte-americano?
Sim, mas isso veio mais tarde. O Lou Reed foi uma grande influência para o meu segundo álbum. Quando digo que escrevi o ‘Bairro do Amor’ muito influenciado pelo Lou Reed, as pessoas não acreditam, dizem que não tem nada a ver. De facto, não tem, mas cá dentro, tinha. As mudanças de acordes, por exemplo… há muito Lou Reed, David Bowie… mas podia estar aqui a dizer uma lista que nunca mais acaba, como os Led Zeppelin, por exemplo…
Porquê o Rock and Roll? Até tomando em conta o passado na música clássica…
Um gajo com 14 anos, no quarto ano do Liceu Camões, começa a ouvir Beatles na jukebox que estava mesmo na esquina ao pé do liceu, Stones… e outros, como os The Who… e percebe ‘Pá, isto é que é. Que se lixe o Schubert, o Beethoven e o Mozart, que vão todos dar uma curva. Quero é isto’. Miúdas, Rock and Roll e dançar? Festas? Isso é que é. Depois só retomei os estudos já aos 33 anos.
Esse mundo do sexo, drogas e Rock and Roll está romantizado?
Isso também consta no percurso, obviamente, mas trabalha-se muito. Há a ideia que as estrelas de rock não fazem nada, mas não é bem assim. Há pessoal que tem lidado mal com o sucesso, especialmente quando é repentino. Tem que se ter sorte, muita perseverança, resiliência e trabalhar muito para conseguir chegar a um determinado nível a escrever e a tocar. Portanto, não é mesmo só sexo, drogas e rock and roll… mas, claro, alegrava o percurso muitas vezes [risos].
‘Resiliente’ é uma boa palavra. Define-o bem.
É uma palavra que se usa muito agora. Eu sou um gajo resistente, fisicamente e na minha estrutura mental. Se tenho um objetivo, consigo lá chegar, independentemente dos obstáculos. Sempre que eu quis gravar um disco, arranjei maneira de o fazer… sem gastar um tostão, obviamente. Arranjei sempre editoras para pagar estúdio, músicos e etc.
Isso é um feito.
É, às vezes deu trabalho, mas nunca desisti e é algo que tenho a meu favor.
Com uma carreira que já vai longa, o que o mantém motivado para continuar?
Faz com que me sinta bem, com saúde, e gosto muito disto. Sou bastante eclético. Há períodos em que me apaixono por determinado tipo de música… e, por exemplo, dentro da Clássica, por determinado período ou compositor. O mesmo acontece no Rock, com os Blues ou o Jazz.
Que se lixe o Schubert, disse há pouco, mas se ouvirmos a sua discografia ele e outros da música Clássica estão lá…
No meu comportamento mandei lixar, mas ficaram cá. Quando tinha 32 anos, tinha um filho e senti que tinha de assentar um bocado, reciclar e coordenar ideias, então decidi estudar música. Acabei o curso superior aos 40 anos, tinha o dobro da idade dos meus colegas todos. Mas eu sentia-me como se tivesse a idade deles. Se não ia a uma aula de Formação Musical, Acústica ou História da Música, alguém me passava os apontamentos.
Então reviveu, de alguma forma, os anos de escola, não?
Foram anos fantásticos. Apanhei professores extraordinários. Eu já tinha algum nome e trabalho feito, mostrado em concertos… às vezes não podia ir às aulas porque tinha tido concertos ou então, pronto, porque tinha andado nos copos, mas aprendi muito e tive grandes professores e colegas.
Tinha um professor que dizia que era da ‘escola russa’, assim mais disciplinador, não?
A minha grande professora de piano, que me começou a ensinar quando tinha 8 anos e até aos 14, quando mandei tudo dar uma volta. Depois, quando decidi voltar a estudar música, fui ter com essa senhora, Fernanda Chichorro, que me recebeu de braços abertos e que me preparou para o exame do sexto ano do Conservatório. Depois tive a Olga Prats, minha grande amiga que faleceu há pouco tempo [2021], mas quem me preparou, de facto, para o meu último exame do curso superior foi o Miguel Henriques. Escola russa, dura, mas ele não dava em cima de mim, ele não tinha era piedade nenhuma. Dizia: «Estás cansado? Olha, também eu, vá». Aprendi muito com ele.
Compensou essa dureza e essa disciplina?
Compensou. Safei-me muito bem nos exames.
Já costuma ser-se difícil fazer o alinhamento de um só concerto… agora seis… como tem sido escolher as músicas para cada um?
Tem sido engraçado porque estou a visitar músicas que já não sabia tocar, e estou a descobri-las e a achar piada. Eu e o resto da banda estamos empenhados nisto com todo o gosto e com muito trabalho. Eles, ainda por cima, como são muito mais novos do que eu, há canções que eles pura e simplesmente não conheciam. Para mim, no fundo, elas continuam cá dentro [aponta para a cabeça] porque escrevi-as, mas, mesmo assim, estou a estudá-las e a reaprendê-las. Isto da Antologia foi ideia dos meus managers, que de vez em quando têm ideias assim destas, e aceitei o desafio. Estamos a trabalhar muito bem. O primeiro é a solo, como já tenho feito. Aliás, o ‘Só’ ao vivo foi gravado entre o CCB e a Casa da Música em 2016, por exemplo, e tenho feito ao longo dos últimos anos, de vez em quando, concertos a solo. O primeiro concerto é piano e eu, onde percorro, praticamente, todos os discos também, mas em doses pequenas. Não gosto de ver, enquanto públicos, concertos – ou teatro, seja o que for – demasiado longos, porque começo a chatear-me. Nos tempos das jam sessions e de muita maluquice, podia estar até 12 horas a improvisar com os amigos, mas concertos de mais de duas horas não. Pronto, depois ‘cada Tivoli’ [concertos II a V no Teatro Tivoli] corresponde a três álbuns. Eu tenho 12 álbuns de originais, portanto dá três por concertos, e salvo o último Tivoli, falta escolher uns detalhes finais, o repertório de cada concerto está feito. Alinhar as músicas, depois é coisa de se fazer nos próximos dias. O último concerto é Palma’s Gang, sem o Zé Pedro, mas vai ser uma reunião muito engraçada.
Isso é uma marca de quando se tem uma carreira tão longa, vão-se perdendo colegas ao longo dos anos… como lida com isso?
Isso é sempre muito chato. E ainda por cima há algumas mortes inesperadas, como foi o José Mário Branco. O Zé Pedro já tinha problemas de saúde grandes nos últimos anos, mas, de qualquer forma, é sempre muito triste. Eu guardo, não apago as últimas mensagens que troquei com o Zé Mário, o Zé Pedro, e outros que também já fui perdendo ao longo dos anos. Mas isso… é como é. It is what it is e vamos seguindo.
Há algum dos concertos da Antologia que o deixe mais ansioso ou mais entusiasmado?
O melhor é sempre o próximo. Estou a estudar bastante em casa, e o tempo livre que tenho é passado ao piano…
[A assessora entra na entrevista]: São 100 músicas, entre todos os álbuns. É muita fruta, até para mim que as escrevi, agora para os outros músicos… exceto o meu filho Vicente, que toca comigo há 20 e tal anos, que nasceu e cresceu a ouvi-las. É um excelente músico e está a fazer um excelente trabalho, tal como os outros músicos. Isso também motiva. Depois estamos sempre os dois ao piano a tocar e a gravar para mandar aos outros músicos para rever estruturas e acordos. Dá muito gozo, isto. Não estou ansioso em relação a nenhum concerto, sei que vão correr bem.
Ao longo de 50 anos, já falou com muitos jornalistas. Que pergunta é que nunca lhe fizeram, e que gostaria que lhe tivessem feito?
Já me cruzei com muitos, mesmo. Essa pergunta, eh lá… [risos] acho que nunca fizeram. É essa, então. Estou a brincar, acho que nunca me perguntaram quando é que tiro o brevet de piloto e compro um avião [risos]. Ou carta de marinheiro, quem sabe. Chapéu já tenho, só falta o dinheiro para comprar o barco e a avioneta.
Se calhar de avioneta fazia as viagens do tour mais depressa…
É, mas como eu tenho tendência para acelerar, talvez nos aviões não seja boa ideia.