A primeira condição que cada leitor deve exigir do seu próprio ânimo quando segue algum desses casos que nos surgem com um ar de escândalo, num ricochete desgraçado entre as redes sociais e a imprensa, é uma certa reserva, uma suspensão do juízo, sobretudo porque é próprio de um certo regime de chicana virem sempre umas figuras muito arreliadas lembrar os altos valores que estão em causa, os perigos que nos espreitam, o cerco tenebroso em que vivemos, e como, de um momento para o outro, se não defendermos a moral e formos absolutamente exigentes, escrupulosamente sanguinários, é quase certo que os bárbaros tomarão a cidade.
Mas com tantos avisos de perigo iminente, talvez o terror que mais intimamente ensombra a nossa época se exprima por aquilo que se adia e nunca se abate sobre nós, uma ausência que nos devolve constantemente ao vazio que entretemos. Vêem-se os sinais do entardecer, mas depois ninguém sabe da noite. Pelo menos não dessa mais negra que, de tanto ser representada entre o horror e o êxtase, começámos a ansiar por ela. Se a noite cai, o pior são aquelas pessoas que chegam da fronteira e confirmam que não há lá sinal dos bárbaros. “E agora, que vai ser de nós sem os bárbaros?/ Essa gente era uma espécie de solução.” Os versos são de Kavafis, na tradução de Jorge de Sena. Aquilo que nos devolve à pior das sensações é esta noção de que todo o exagero de que se usa para exprimir de forma enfática algo de importante ou urgente nos atira para o regime da paródia, e são muito poucos aqueles que conseguem ir para além dele. A paródia tornou-se uma película que, depois de tantas voltas serem dadas a um determinado acontecimento, não permite já ver nada senão essa camada de protecção ridícula.
Depois de tantas previsões da catástrofe, numa época em que “todos querem ser donos do fim do mundo” (Don DeLillo), quando se multiplicam por toda a parte os profetas da desgraça, nasce quase uma esperança malévola: a de que algo se cumpra, a de que nem todas essas promessas fiquem só por isso mesmo, um desejo de roçar esse horizonte apocalíptico. É a grande fantasia do nosso tempo, e mesmo os acontecimentos mais ridículos são transformados em sintomas e avisos ominosos de que o fim está próximo. Há um certo ambiente tenso de emoções que já não encontram correspondência, uma certa tempestade neurótica que tem mais força do que a realidade, que em certa medida até desagrega a realidade. Não são tanto as rápidas transformações ou o pavor de certas ameaças existenciais como a crise climática o que gera esta sensação de perda colectiva do mundo, é antes essa forma de paródia com que se acicatam os ânimos, para depois de expressos da forma mais inflamada alguns sentimentos, se ficar no mesmo lugar, ou, mesmo quando algo acontece, o desastre ser ele mesmo uma decepção.
Como nos diz Enrique Vila-Matas no livro “Perder Teorias”, para o bem ou para o mal (provavelmente para o segundo), no Ocidente o brilho e horror de outro tempo foi-se, e tudo já passou, quer dizer, já cessou por completo, o esplendor da Europa desvaneceu-se. Vivemos no nada, depois da tempestade, embora às vezes nem nos lembremos.” Nem o regresso da guerra e as constantes imagens de devastação que nos chegam da outra ponta do continente são o suficiente para inspirar à maioria de nós um verdadeiro sentido de terror. Na verdade, agora que o espectáculo começa a tornar-se repetitivo, o aspecto mais saliente é a forma como aquele conflito parece estar, por fim, a beliscar o bem-estar e a perspectiva de abundância em que muitos vivem indiferentes a tudo. Mesmo que a história pareça ter regressado ao nosso continente, é uma história para a qual nos falta o espírito e a capacidade de decisão de outrora. Tentamos escrever ou ler a história e tudo nos parece um grande vazio. De resto, é esse mesmo vazio que tornou possível uma sociedade da aceleração doentia, que se perde numa pura actividade sem fim, numa enlouquecida correria rumo ao nada.
E agora vamos ao caso que tem gerado algum bulício esta semana, o de um cronista e crítico musical do jornal Público que, depois de se verificarem várias situações de plágio, a última delas de uma crónica publicada no mês passado no El País se viu suspenso, e enfrentou o juízo devastador de todos esses que só aguardam a sugestão de um alvo para se lançarem a ele e o desfazerem pelo clamor e impiedade próprios de uma turba assanhada. Não vale a pena determo-nos nos aspectos mais ou menos circunstanciais do caso, sendo que, depois de o jornalista ter assumido o erro, a única coisa que esteve em causa foi a severidade da sua punição, e, de resto, todo o empenho da colega de profissão que fez a denúncia do último plágio foi sempre no sentido de exigir que o castigo fosse absolutamente exemplar, de modo a causar arrepios em toda a classe. Tanto assim que chegou a mostrar-se seriamente desiludida com o cronista espanhol cujo texto foi plagiado por não a acompanhar na severidade da sua denúncia, a ponto de, tendo referido a admiração que a fazia não perder uma das suas crónicas, tal como não perdia as crónicas do jornalista do Público, agora já não lerá nem um nem outro. Poderíamos dissecar outros elementos mais específicos desta forma de paródia, mas, e já que é o plágio que aqui nos aparece como uma ofensa capital, então é este que nos deve merecer algumas considerações.
Mas é melhor fazer um transporte para o campo literário, começando por recordar um célebre fragmento de Laurence Sterne, o escritor e clérigo anglicano irlandês que, tendo sido pároco em Yorkshire, se notabilizou pelo rasgo e extravagância dos seus sermões, e que publicou, entre 1759 e 1767, um bizarro romance que viria a impor-se como uma obra-prima da sátira e do humor, fazendo dele um dos autores mais influentes entre os modernistas, e esse fragmento versa precisamente sobre a questão do plágio. Ora, Sterne lança-se ali numa tremenda descompostura contra os autores poucos originais e plagiários, ao mesmo tempo que assume que ele mesmo cedeu mais do que uma vez à tentação, algo que só lhe perdoará quem sabe como esta pode ser pior do que aquela que chega a exercer a carne, pois um espírito que se sente encadeado pelo génio de outro, por vezes não encontra forma mais justa de lhe render homenagem do que tentar engoli-lo, fazer com que uma passagem que considera insuperável passe assim a estar atravessada nesse outro corpo que é proposto à posteridade.
Naquele fragmento Sterne submete-se a um exame de consciência e promete que não voltará a copiar. Mas se este fragmento com intenção de emenda é hoje tido como um momento genial é por ter sido plagiado do prefácio de “Anatomia da Melancolia”, de Richard Burton. Vila-Matas refere esta passagem no livro lá atrás citado, e adianta que Javier Marías, nas suas notas à tradução espanhola de A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, esclarece que o que Sterne admite serem plágios, na maioria dos casos, são adaptações tantas vezes enriquecidas de textos que o tinham ferido no órgão do espanto, esse que, como se sabe, recupera pior dos golpes que lhe são infligidos do que o fígado recupera de uma cirrose. E se compararmos a recriação destes textos com aqueles que o influenciaram, “poderemos comprovar que não se pode acusar Stern de plagiador, mas deveremos reconhecer-lhe, isso sim, um invulgar talento para parafrasear”, escreve Vila-Matas, citando Marías, que, por sua vez, sente a necessidade de atenuar as acusações que Sterne levantou contra si mesmo face ao juízo bem mais severo que se passou a ter em relação a estas questões do plágio. Porque, no fundo, há sempre uma certa ingenuidade daqueles que acusam alguém de plágio como se se tratasse de uma ofensa capital. “Não tenhamos ilusões: escrevemos sempre depois de outros” vinca Vila-Matas, que também se socorre de outro dos expoentes da literatura do século XX, Julien Gracq, autor do fabuloso romance “O Mar das Sirtes”, o qual, pelo uso que faz das intertextualidades, desse modo de absorver o que foi feito antes, prossegui-lo, combinar e transformá-lo, nos lembra que escrever raramente está relacionado com um impulso plenamente autónomo. “O mimetismo espontâneo conta muito: não há escritores que não estejam inseridos numa cadeia ininterrupta de escritores.” O que parece desfaçatez na atitude desse que plagia sem fazer o que fazem todos, reconstruindo plasticamente a frase e tentando que não se perca grande coisa nessa operação de paráfrase não deixa muitas vezes de ser um sinal de rendição, a do ladrão que deixa demasiadas pistas, quase como se a sua verdadeira ambição fosse ser descoberto.
No livro em que Vila-Matas entretece uma frágil ficção de um escritor convidado para um simpósio internacional em Lyon, e que acaba por ser deixado por um táxi no hotel ficando ali à espera sem que a organização chegue a contactá-lo, e acabando por escrever um ensaio em que, a partir da leitura de “O Mar das Sirtes”, concebe uma teoria quanto aos aspectos essenciais e irrenunciáveis que devem caracterizar qualquer romance que pretenda dar passos em direcção ao futuro, num necessário compromisso com a tradição, ele enaltece justamente a forma como Gracq, nesta sua obra, não apenas captura “a extrema beleza da mais absoluta modernidade, como, além disso, dir-se-ia que [o romance está] carregado da electricidade estática de uma velha biblioteca (como diria Rimbaud)”. “É que O Mar das Sirtes não se alimenta apenas dos materiais que a vida lhe proporciona, mas como que também cresce, misteriosamente, sobre outros livros. O que não faz mais do que confirmar-nos que, como diz Gracq, o génio não passa de um contributo de bactérias particulares, uma delicada química individual no meio da qual um espírito novo absorve, transforma e, finalmente, restitui, com uma forma inédita, não o mundo em bruto, mas sim a enorme matéria que o precede.”
Com esta reflexão, se Vila-Matas usa um seu duplo para anunciar o que pretende fazer a seguir, oferecer-nos um resumo das conjecturas que o levariam a escrever um romance como “Dublinesca”, ao mesmo tempo parece estar também a montar a sua própria defesa como autor: “No meu caso, a essa operação de ideias e frases de outros que adquirem outro sentido ao serem levemente retocadas deve acrescentar-se uma operação quase idêntica: a invasão, nos meus textos, de citações literárias totalmente inventadas, que se misturam com as verdadeiras”. E aqui vale a pena também relembrar como o grande poeta espanhol Antonio Machado indicou certa vez que, se o obrigassem a eleger, de entre todos, um exemplo, Virgílio seria a sua escolha. Não por qualquer das obras que o imortalizaram, mas antes de tudo por ter dado “asilo nos seus poemas a tantos belos versos de outros poetas, sem dar-se ao trabalho de desfigurá-los”. Não se pretende com isto justificar nem desculpar seja o que for, mas, para citar agora Vírgilio, parece-nos adequado mostrar-se “indulgente com os que se submetem e subjugar os soberbos”. Afinal, a essa estupidez que avança de forma imparável nos nossos dias, cheia de convicção da necessidade de impor a sua moral redutora com base em punições exemplares, convém lembrar que na grande tradição literária a ideia de originalidade é uma moda tão recente quanto imbecil. E é curioso que seja numa época em que as palavras que proferimos têm já tanta dificuldade em agarrar novos sentidos, quando tantos se desluzem em banalidades de modo a agradar e a que qualquer um se possa sentir roubado, e quanto algo de mais profundo não deixa de soar a um espírito mais erudito, não um artigo lido horas ou dias antes, mas algum texto mais remoto, como se um eco regressasse à voz, restituído do espanto mais virgem, como se aquele que fala ou escreve sofresse na inteligência essa repetição, incapaz de lhe impor algum desvio, degradando-o apenas para se obrigar a esse cadastro das originalidades assumidas num instante para logo no seguinte serem esquecidas.
Se queremos saudar a beleza, será difícil não o fazer por meio de um gesto simples, que a acompanhe, ao invés de forçar um meneio absurdo para nos colocarmos em evidência sujando esse instante alegre. De resto, tem vindo a formar-se um público nos nossos dias que não consegue comover-se com nada do que se passa num palco, ou seja onde for, que não se sinta compelido a participar da forma mais ostensiva possível, como se, movido pelo entusiasmo e admiração, não pudesse senão tomar de assalto aquela performance. Nos concertos, os cantores são avassalados pela voz da audiência que, muitas vezes, já não está tão interessada em ouvi-los como em ouvir-se a si mesma. Parece um bando de grilos que, inebriados pelo luar, elevassem o canto a um grito de guerra a ponto de despertar a lua e fazê-la estatelar-se no meio deles.
Um dos muitos textos através dos quais a jornalista que denunciou o plágio nas redes sociais, travando a sua cruzada contra esta ofensa capital, termina com a recordação de um episódio que envolve o poeta e cronista Manuel António Pina. Joana Fillol conta que um dia teve a felicidade de o entrevistar, em conjunto com uma ex-colega para a revista JJ – Jornalismo e Jornalistas. “Nessa entrevista, eu, que era como tantos portugueses, devota das crónicas que ele publicava na última página do JN, no seu espaço “Por outras palavras”, onde achava que dava verdadeiras aulas de cidadania, perguntei-lhe algo como, se ele, com aquelas crónicas pretendia mudar o mundo. Ele riu-se. E respondeu-me em seguida ‘Eu, mudar o mundo? Nesta fase da minha vida já só quero que o mundo não me mude a mim’ (estou a citá-lo de memória, com a frase que tantas vezes me tem vindo à cabeça ao longo destes últimos anos). Teria uns vinte e muitos, trinta e poucos anos quando lhe fiz a pergunta. Hoje, aos 43, não quero crer que esteja a entrar nessa fase de que Manuel António Pina falava…” Ora, perante este golpe em que uma humilde frase, ao ser citada, se torna um sinal de soberba, é bom lembrar que, se Pina criou uma obra literária marcante, foi precisamente pela forma tão desassombrada como procurou escapar a esse “cansaço de existir num mundo que, tal como a literatura, não sabe senão repetir-se” (Rui Lage), deixando claro que trazia “a alma pronta para o esquecimento”, reconhecendo que “a literatura é uma arte escura/ de ladrões que roubam a ladrões”. Se ele reconheceu e soube resolver essa forma de desamparo moderna, o do escritor que vive “em permanente insónia no museu de tudo”, tentando recuperar o fôlego entre o excesso de memória e a ressaca de uma herança esmagadora, se o poeta consegue ainda resistir, e manter o mesmo espírito de insubmissão perante o “ecletismo histriónico que é definidor da nossa época” (Lage), isso deve-se à capacidade de se livrar das mais tacanhas ilusões que nos são transmitidas, aquelas que consomem os espíritos incapazes de atear um fogo interno, tão selvagem que não respeite as tramitações comuns, mas arda, consuma tudo no seu caminho. “Na nossa terrível vigília/ cultivamos técnicas mortas,/ o pleonasmo, a pura repetição”, escreve Pina, não se deixando abater perante a condição inescapável de todos nós como criaturas tardias.
E naquele que é o mais penetrante estudo da obra poética de Pina, “A Presença do Mistério”, um ensaio que acaba de ser reeditado juntamente com uma antologia comentada do poeta, Rui Lage mostra como ele resolveu com toda a serenidade e uma boa dose de ironia esse problema de “uma poesia posta de castigo”, uma poesia pejada de correspondências mais ou menos veladas, percorrendo sem se perder os “labirintos babélicos”, onde “o risco da dispersão e da citação enviesada ou apócrifa, o risco do lapso, é grande. Ora, lapso, hesitação e dúvida frequentam despudoradamente a poesia de Pina, ou não fosse a linguagem, nele, hiato, lugar de afloramento parentético de um outro”, frisa Lage. E se não estamos aqui a defender o plágio, é importante também não deixar que um bando de virgens venha ditar as regras no prostíbulo literário, impondo essa catequese inane e a soberba da ignorância dos que nem saberiam como criar um rumo entre “papéis velhos, vidas mortas,/ identidade, sujidade, eternidade”, “vagueando/ por palavras alheias e infernos alheios”, mas que só sabem vir-nos com rascunhos de um mapa do tesouro redentor, prometendo-nos os seus paraísos retardados.