Eis que, de repente, por entre as árvores frondosas do jardim da Mata Dona Leonor, hordas de adeptos vão voltar a caminhar em direcção ao velho campo onde o Caldas Sport Clube disputou, durante cinco épocas consecutivas, confrontos rijos contra os melhores dos melhores do futebol nacional. Foram cinco anos únicos – de 1955-56 a 1958-59 – e que jamais se repetiram. É por isto que a Taça de Portugal, na sua mais pura essência – estragada tão frequentemente pela trampolinice de vermos os clubes pequenos desperdiçarem a possibilidade de receberem os maiores no meio dos seus adeptos para irem jogar a estádios maiores nas redondezas – é a festa do futebol. Entre novas aventuras e velhas recordações…
Foi no dia 9 de Outubro de 1955 que o Caldas recebeu pela primeira vez o Benfica para o campeonato nacional. Acabam de cumprir-se 67 anos. Entusiasmo, claro, e muito. Vítor Santos, o velho chefe-de-redacção de A Bola, que ainda tive o privilégio de ter como meu chefe, tirou-se das suas tamanquinhas e foi às Caldas perceber o que valia uma equipa treinada por outra das figuras inesquecíveis do futebol português, József Szábo, que viria a tornar-se simplesmente José ao fim de tantos e tantos anos de vida entre nós.
Decorria apenas a quarta jornada. Na primeira, os caldenses tinham perdido 0-3 em Setúbal; na segunda, bateram o Atlético em casa por 1-0; e na terceira tinham ido a Braga levar uma sova de 1-4. Nada de muito brilhante, apesar dos sorrisos que se viam por toda a parte já que a visita de um grande ao Campo da Mata não acontecia com frequência.
Já na véspera se comentava pelas mesas dos cafés: “Vai ser a maior assistência de sempre! Não duvides. Escuta o que te digo!” Faria bem o interlocutor se tivesse estado atento e venerando. Foi mesmo a maior enchente de todos os tempos no Campo da Mata. Havia até gente pendurada nos plátanos e nos choupos em redor do campo a tentar espreitar um poucochinho que fosse.
O Benfica tinha gente de respeito na frente, com Coluna (nesse tempo muito mais adiantado no terreno do que nos habituaríamos a ver uns anos mais tarde), José Águas, Palmeiro, Zezinho. O Caldas apresentou um onze sonante: Rita; Amaro e Fragateiro; António Pedro, Leandro e Romero; Martin, Romeu, Bispo, Martinho e Lenine. Rita era o Rita. Esteve quatro anos no Caldas. Mas João e não José, nada de confusões, o José esteve no Sporting e no Benfica (e muito tempo no Covilhã) e ainda era primo dos Cavéns, que era dois e irmãos. O Lenine não devia cair no gotos dos governantes da altura, mas que fazer?, era mesmo Lenine de nome, não de alcunha, e não Vladimir Ilich mas sim Victor Lenine Pereira Santana.
Pelicanos Chama-se aos naturais das Caldas pelicanos. Porque foi esse o cognome da Rainha Leonor que tirava do próprio peito para dar aos desvalidos e se instalou nas Caldas (da Rainha) para se ver livre das múltiplas traições do marido, D. João II. Pois os pelicanos infernizaram a vida à águia nessa tarde de Outubro. A vitória encarnada saldou-se por um golo, da autoria de Fernando Caiado, aos 15 minutos, numa recarga a uma bola defendida por Rita. “Afinal, os campeões não nos mostraram nada de especial. Jogámos de igual para igual com eles. Estas expressões foram ouvidas ontem, quando a multidão que encheu a deitar por fora o Campo da Mata, nas Caldas da Rainha, abandonava o aprazível recinto depois de ter assistido ao jogo com o Benfica…”, iniciava Vítor Santos a sua crónica. E continuava: “No meio-campo, o Benfica teve hegemonia, num escasso tempo útil de jogo, o qual revelou um Caldas como conjunto animoso cujo maior mal terá sido o de ter jogado em meio carregados com alguma… electricidade contra o campeão nacional”.
Organizados, decididos, apenas com pouca capacidade ofensiva, os caldenses saíam da refrega pouco convencidos. Na segunda volta, iriam à Luz perder por 0-3, o que também não era de envergonhar ninguém. Vividas também com a alegria nos píncaros as visitas do Sporting (0-2) e, sobretudo a do FC Porto (3-3!). No final das contas, à jornada 26, um satisfatório décimo-primeiro lugar com 19 pontos, seis vitórias, sete empates e treze derrotas, fixando-se à frente de Atlético, Académica de Coimbra e Braga. Com o mais importante a ficar garantido: a permanência. Na época seguinte a festa continuaria.