Reino Unido em estado ‘psicodramático’

O partido que governou nos últimos 12 anos bateu no fundo. Sunak é visto como opção, Mordaunt também. Boris Johnson é a incógnita.

Liz Truss não durou no posto de primeiro-ministra – aguentou menos do que uma alface, troça-se na imprensa britânica – mas teve um mandato cheio. Depois de 12 anos de governação, os conservadores, cuja credibilidade já estava em xeque face aos escândalos de Boris Johnson, parecem ter agora perdido quaisquer possibilidades de a recuperar, ficando a uns inacreditáveis 24% dos trabalhistas na compilação de sondagens do Telegraph.

Daí que os conservadores tentem a todo o custo evitar mais uma disputa fratricida, apresentando um novo líder o mais rápidamente possível – na pior das hipóteses até sexta-feira. Estando todos os olhos virados para Rishi Sunak ou Penny Mordaunt, os candidatos ideais para a maioria dos conservadores em Westminster. É que muitos deles certamente darão por si a acordar a meio da noite, receosos do regresso de Johnson, adorado pelas bases do partido e com motivos para se vingar.

Logo nos seus primeiros dez dias, Truss encabeçou a despedida da Rainha Isabel II, o que seria de esperar que lhe desse um certo período de graça, sendo os conservadores o partido mais associado à monarquia. Contudo, durante os restantes 35 dias, apresentou um orçamento intercalar com corte fiscais que não explicou como iria pagar, o que afundou a libra, ficando próxima de descer abaixo do dólar, causando também um aumento dos juros da dívida pública. Isso quase rebentou os fundos de pensões e levou o Banco de Inglaterra a intervir, aumentando a taxas de juros, fazendo que os britânicos com hipotecas pagassem mais todos os meses.

«Durante demasiado tempo satisfizemo-nos em lutar por redistribuição», explicou o então ministro das Finanças, Kwazi Kwarteng, na apresentação do seu orçamento intercalar, sumarizando a doutrina económica do Governo. «Agora precisamos de nos focar em crescimento».

O objetivo era atrair investimento e agradar aos mercados. Mas, quando o plano foi rejeitadi por estes, Truss entrou em espiral, acabando por demitir o seu grande amigo Kwarteng. Substituiu-o por Jeremy Hunt, um antigo adversário, que apoiara Sunak na corrida a líder conservador. Logo aí, via-se a fragilidade da primeira-ministra. Que quando chegou ao seu cargo exilara os apoiantes de Sunak, não lhes dando nenhum cargo de destaque no Governo, e agora cedia a pasta das Finanças, como quem estende um ramo de oliveira.

 

Drama, choro e empurrões

O Daily Mail – um tablóide conservador e excelente barómetro da opinião no partido, sendo o jornal com maior tiragem no Reino Unido – anunciou de imediato que Hunt era o «primeiro-ministro de facto», lia-se numa manchete. A ideia seria que, em troca de não sofrer uma revolta parlamentar, a primeira-ministra tinha que ficar sossegada enquanto o seu ministro das Finanças decidia tudo nos bastidores.

Quando Hunt começou a desfazer todas as promessas feitas por Truss na sua candidatura a líder conservadora, uma a uma, isso tornou-se óbvio. Ainda mais com a demissão da ministra do Interior, Suella Braverman.

Tratava-se de uma feroz defensora de políticas duras quanto à imigração – «adorava ter uma capa do Telegraph com um avião a descolar para o Ruanda, esse é o meu sonho», chegou a dizer, referindo-se ao esquema para deportar requerentes de asilo, considerado ilegal pelos tribunais europeus de direitos humanos – e lealista à primeira-ministra. Supostamente ter-se-ia demitido por violar protocolos de segurança. Na verdade, foi escorraçada do Executivo como demonstração do poder de Hunt, lia-se na imprensa.

O culminar do melodrama deu-se no Parlamento, na quarta-feira. «Está a ser escrito um livro sobre o período da primeira-ministra no cargo», apontou o líder trabalhista, Keir Starmer. «Vai sair até ao natal. É a data de lançamento ou ou título?», gozou, em pleno hemiciclo. «Sou uma lutadora, não uma desistente», retorquiu Truss, enquanto era alvo de troça da oposição. Já os seus deputados, atrás de si, ficaram calados, tentando manter aquilo que só pode ser descrito como ‘cara de póquer’.

Horas depois, o hemiciclo virava um caos, durante uma votação relacionada com a proibição do fracking. O regresso desta forma de extração de combustível, com enormes custos ambientais, era uma das medidas mais queridas de Truss – apesar contrariar o manifesto com que os conservadores venceram as eleições de 2019 – e que a primeira-ministra apontava como solução para a crise energética no Reino Unido.

O Executivo entrou em pânico, receando que os seus deputados votassem ao lado da oposição e informou-os de que quem violasse a discplina de voto seria expulso do partido. À medida que ficou claro que muitos conservadores estavam dispostos a isso – até entusiasmados, como forma de se distanciar de Truss –, o Governo recuou e disse que afinal não iria expulsar ninguém.

Os conservadores não sabiam o que fazer. E o resultado foi incrível. «Nunca vi cenas como estas na entrada do hemiciclo», espantou-se o deputado trabalhista Ian Murray. Contando no Twitter ter visto conservadores «em guerra aberta», ministros aos gritos com deputados, enquanto a whip – ou responsável pela disciplina de voto – e o seu número dois os arrastavam fisicamente para os obrigar a votar. Uma deputada trabalhista, Anna McMorrin, relatou ter visto um colega conservador a chorar enquanto era levado.

A whip, Wendy Morton, desistiu de impor a disciplina partidária a meio, tendo a própria primeira-ministra andado a correr pelos corredores de Westminster, tentando encontrá-la para a convencer a não se demitir, chegando a deixar para trás os seus seguranças, avançou o Times. Lá conseguiu, mas acabou por nem ir votar a favor do fracking. Entretanto, o número dois da whip, Craig Whittaker, foi visto a sair disparado da entrada do hemiciclo, tweetou uma das jornalistas na galeria, Isabel Hardman, do Spectator. O dirigente conservador, quando abandonava o caos, gritou algo como: «Estou furioso e estou-me a fod**».

No final de contas, o Governo até venceu a votação. Mas ficou certo que já não duraria muito. «Escrevi milhões de palavras sobre os últimos seis anos, em que a política britânica se tornou no sonho psicodramático de alguém em crack», tweetou um outro jornalista nas galerias parlamentares, Tim Shipman, do Sunday Times. «Hoje pode ter sido o dia mais tresloucado de todos», descreveu.

 

Dentro do ‘saco de gatos’

Se houve algo que este final do mandato de Truss mostrou foi um partido dividido. Um proverbial ‘saco de gatos’, onde não se concorda em quase nada.

Há pelo menos três fações com perspetivas ideológicas bem marcadas. Os libertários, onde se incluem Truss e Kwarteng, que sonham com os tratados de livre comércio permitidos pelo Brexit, querendo política estilo Ronald Reagan, cortando impostos às empresas mesmo que isso implique  o aumento da dívida pública. Os One Nation Tories, que por princípio não se opõem à noção de Estado social, querendo um mínimo de redistribuição, onde se insereria Mordaunt. E depois os centristas como Sunak, mais preocupados com a estabilidade das contas públicas, estando mais dispostos a programas de austeridade.

Agora, todas estas fações terão de se entender de maneira a apresentar um novo líder. Juntando-se às diferenças ideológicas as disputas de ego. «Espero que tenha valido a pena», declarou o deputado conservador Charles Walker, dirigindo-se aos seus colegas que apoiaram Truss, ainda esta não tinha caído. «Porque o dano que eles conseguiram fazer ao nosso partido é extraordinári»”, lamentou, perante as câmaras da BBC. «Estou farto de pessoas sem talento», desabafou.

No que toca a Mordaunt, é vista como a potencial candidata de unidade. Mas tem a dificuldade de não ter provas dadas – o cargo mais destacado que teve foi como ministra da Defesa, em 2019, por pouco mais de dois meses – e não há dúvidas de que os conservadores vão precisar de mão firme.

Já Sunak conta com experiência como ministro das Finanças, na prática como nº2 de Johnson, sendo bem conhecido do público por ter levado a cabo os subsídios face à pandemia. Contudo, entre conservadores, é mais lembrado por ter sido quem aumentou impostos para os pagar. Isto além de muitos militantes não o perdoarem, considerando que traiu Johnson ao iniciar a onda de demissões que o derrubou. Pode parecer que foi há muito tempo, entretanto houve o caos do Governo de Truss, mas foi há pouco mais de três meses atrás.

Quem certamente trás experiência é o próprio Johnson, para o bem e para o mal. Saiu acossado de todos os lados, acusado de ter uma resposta desastrosa à pandemia e dar sucessivas festas no nº10 de Downing Street em pleno confinamento, entre outros escândalos. Mas agora, face ao desastre que foi Truss, aumentam as saudades do antigo primeiro-ministro, que já interrompeu as suas férias nas Caraíbas para regressar ao Reino Unido e enfrentar a crise política.

Até porque, se a agenda económica de Truss deu em tragédia, o seu antecessor pode distanciar-se dela, afirmando não ter nada que ver com o assunto. Aliás, essa foi uma das muitas críticas à primeira-ministra. É que o seu mandato vinha das eleições de 2019, mas o programa que a primeira-ministra levou a cabo tinha poucas semelhanças com o levado a sufrágio. Este prometida aquilo que Johnson chamava de Levelling Up, um programa que envolvia um certo grau de investimento público, sobretudo a nível local.