Por João Sena
O primeiro automóvel chegou a Portugal em 1895. Foi um Panhard-Levassor importado de França por Jorge de Avillez, um jovem aristocrata de Santiago do Cacém. Foi o despertar para uma nova realidade e para o aparecimento do Automóvel Club de Portugal (ACP). Sete anos mais tarde um grupo de entusiastas formado por Carlos Calixto, Anselmo de Sousa, Eduardo Noronha e Henrique Anacoreta decidiu “estudar os meios de desenvolver o automobilismo em Portugal, dada a importância que este género de desporto tem adquirido ultimamente em todas as nações cultas”. Foi nomeada comissão executiva para “realizar uma grande corrida de automóveis no outono de 1902 entre a Figueira da Foz e Lisboa (Campo Grande) em que ganhava quem chegasse primeiro”. A ideia inicial era que a meta fosse em Cascais, mas alguém alertou: “Em virtude das diversas passagens de nível existentes entre Lisboa e aquela vila pode haver complicações”. O regulamento da prova foi publicado a 5 de outubro de 1902, as inscrições (10 000 réis para automóveis e 5 000 reis para motos) encerraram dia 20 e os dez concorrentes, entre os quais havia quatro profissionais estrangeiros, fizeram-se à estrada a 27 de outubro. O percurso tinha 270 quilómetros por estradas poeirentas, de mau piso e não sinalizadas, passou por Montemor-o-Novo, Leiria, Alcobaça, Óbidos, Cadaval, Azambuja, Alhandra, Alverca e, finalmente, Lisboa, e os concorrentes não podiam atravessar povoações a mais de 10 km/h.
Nunca visto A imprensa da época referiu que a corrida foi um êxito, e os organizadores asseguraram que havia muita gente no percurso para ver a passagem dos carros sem cavalos, barulhentos e que atingiam velocidades (65 km/h) nunca antes vistas. O evento teve grande impacto nos jornais e revistas da altura, até porque estiveram presentes pilotos profissionais muito bem pagos. O diário A Época escreveu “teve franco acolhimento, o mesmo aplauso, a mesma adesão em todos os verdadeiros sportsmen do paiz”. A revista Tiro Civil não poupou nos elogios “foi coroada do melhor exito a primeira corrida d´automoveis que se effectuou em Portugal. O emprehendimento que tantas contrariedades encontrou para a sua realização e que tão perigoso se afigurava para muitos, foi a bom termo, sem que houvesse qualquer desastre grave a lamentar, sem incidentes de maior monta, sem prejuízos de valor”. No Relatório Oficial da prova, Carlos Calixto confirmou: «Quanto a acidentes, apenas alguns cães mortos e um ou dois abalroamentos sem importância».
A corrida Figueira da Foz-Lisboa estava prevista para se realizar no domingo, 26 de outubro de 1902, mas foi adiada por decreto do ministro Hintze Ribeiro. Segundo o jornal O Século, o adiamento “por indicação do Sr. Ministro do Reino, a que a comissão promotora das corridas prontamente anuiu, em virtude das comunicações das autoridades respectivas, dirigidas ao Sr. Hintze Ribeiro, significando-lhe quanto seria difícil policiar as estradas e vilas do percurso – um domingo, dia em que há mercado em muitas povoações que os automóveis têm de atravessar. Por esse motivo, foi resolvido, não só evitar qualquer desastre sempre possível de se dar, como também deixar aos corredores a via mais livre, transferir a corrida para hoje” [27 de outubro]. A realização do Raid Figueira da Foz-Lisboa só foi possível devido à colaboração da União Velocipedica Portugueza, que fiscalizou na estrada os controlos fixos, das autoridades locais que procuraram manter a estrada livre no dia da corrida para evitar qualquer acidente e a Colonial Oil Company que assegurou o abastecimento dos veículos.
A população da Figueira da Foz esperou, ansiosamente, pelas seis horas da manhã para assistir à partida. Entre aplausos e vivas da multidão, os 10 concorrentes, seis automóveis (dois a vapor e quatro a gasolina) e quatro motociclos, começaram a sair do largo fronteiro à sede do Gymnasio Club Figueirense Figueirense de dois em dois minutos. Os ilustres ‘chauffeurs’ de automóveis eram: Benedito Ferreirinha (Bólide), Camargo (Locomobile), Bordino (Fiat), Martinho (Richard), Afonso de Barros (Darracq) e Tavares de Mello (Darracq), a par deles seguiram as motos de Eugénio d´Aguiar, António Paula, Batista de Santiago e Trigueiros de Martel.
O vencedor foi outro Houve histórias curiosas que envolveram algumas figuras da prova, e, no final, o mais rápido não foi o vencedor. Havia grande entusiasmo e ansiedade na chegada ao Campo Grande. O francês Edmond (Darracq), piloto profissional contratado por Tavares de Mello (representante da Darracq em Portugal) foi o primeiro a chegar à meta. Mas Edmond adormeceu no comboio, não chegou a tempo à Figueira da Foz e não largou. Tavares de Mello percebendo que o seu piloto não estava presente passou para o volante do Darracq, conduziu até Coimbra e aí entregou-lhe o carro. O piloto francês era, de facto, muito rápido e chegou a Lisboa com grande avanço, mas como não fez a totalidade do percurso foi desclassificado – mesmo assim recebeu um prémio de 100 mil reis oferecido pelo proprietário do carro. Bordino com o Fiat, que tinha sido contratado pelo Infante D. Afonso, filho de D. Luís e D. Maria Pia, acabou por ser declarado vencedor, apesar de ter demorado mais 1h20 a cumprir o percurso. Meia hora depois dele surgiu Darracq de Afonso de Barros, e, logo de seguida, a moto Buchet de António Paula de Oliveira. A dureza da prova e a falta de preparação dos ‘chauffers’ levou a que apenas sete concorrentes tenham passado por Coimbra. Os restantes ou não completaram a prova ou chegaram ao Campo Grande depois de ultrapassado o tempo máximo de 10 horas para concluir a prova, pelo que apenas três concorrentes ficaram classificados. Seria necessário esperar 81 anos para a aventura se repetir. A corrida foi marcante para o desenvolvimento do automobilismo em Portugal na medida em que constituiu um ponto de inflexão no capítulo desportivo – ficou claramente provado que, sendo um desporto reservado praticamente às elites, não deixava de ter uma enorme popularidade – mas também no despertar do incipiente comércio automóvel de então. Criou-se, então, a ideia de que o automobilismo reconquistou as estradas que o caminho de ferro havia roubado às diligências.