O Enfermeiro da Noite. Quando o perigo está no hospital

Demorou 16 anos até ser descoberto… Durante esse período, admitiu ter matado 40 pessoas. Porém, especialistas especulam que o número possa chegar às 400. O Enfermeiro da Noite, que estreou no dia 26 na Netflix, conta a história de Charles Cullen, pelos olhos da colega de profissão que ajudou a denunciá-lo.

Ninguém sabe ao certo quantos pacientes Charles Cullen, ou o “enfermeiro da morte” – como alguns preferem chamar-lhe –, assassinou durante a sua carreira de 16 anos como enfermeiro hospitalar. Em 2003 foi condenado a prisão, depois de ter confessado 40 mortes intencionais, mas alguns especialistas especulam que a contagem real pode chegar a 400. Como o fazia? Envenenando pacientes com uma dosagem secreta de drogas como insulina e digoxina.

Cullen passou por inúmeros hospitais e asilos e foi denunciado, várias vezes, por pacientes pela sua má conduta. Mas foi apenas durante o seu tempo no Somerset Medical Center, localizado em Somerville, Nova Jersey, que começou a levantar sérias suspeitas.

Considerado um dos serial killers mais prolíficos da América, a sua história foi recentemente lembrada, com o lançamento de The Good Nurse, em português, O Enfermeiro da Noite, na plataforma de streaming Netflix. Protagonizado pelo ator Eddie Redmayne como assassino e Jessica Chastain como a enfermeira Amy Loughren, sua amiga e responsável pela resolução do caso, o filme baseia-se no livro homónimo do autor Charles Graeber.

 

Aos olhos de Amy

O mais óbvio seria concentrar o enredo nos assassínios de Cullen e na forma como este conseguiu não ser descoberto durante tanto tempo. Porém, o realizador dinamarquês Tobias Lindholm optou por seguir Loughren, a enfermeira do turno da noite e mãe solteira de dois filhos que luta para gerir não só o excesso de trabalho e as rotinas das crianças, como também um sério problema cardíaco – chegou a colapsar durante o trabalho, tendo ela própria de ser levada às urgências e receber um pacemaker. Apesar do seu problema, o próprio hospital não lhe fornece um seguro de saúde se ela não trabalhar lá mais de um ano.

A dada altura, Cullen é contratado para trabalhar ao seu lado e, aliviada, a profissional de saúde acaba por se apoiar no colega. Ele torna-se o seu melhor amigo e a enfermeira até o leva a conhecer as suas filhas, ficando Cullen a tomar conta delas algumas vezes, quando a amiga adoece.

Quando finalmente Loughren começa a sentir esperança no futuro, uma série de mortes misteriosas de pacientes no hospital faz com que tudo se desmorone.

Logo após a contratação do jovem enfermeiro, pacientes começaram a morrer de forma suspeita. Por exemplo, uma mulher que recuperava de uma reação alérgica e que havia encontrado o amor aos 77 anos morreu de repente. Uma jovem mãe que tinha sobrevivido a um acidente também acabou por morrer inesperadamente – assim como muitos outros pacientes que aparentemente estavam no caminho da recuperação.

Segundo o Times, “nenhum paciente é baseado diretamente em qualquer uma das vítimas conhecidas de Cullen, marcando outro afastamento das representações tradicionais em dramatizações de crimes reais, que muitas vezes retratam vítimas e sobreviventes reais”. De acordo com a guionista Krysty Wilson-Cairns, esta escolha foi feita para evitar potencialmente retraumatizar as famílias das vítimas de Cullen, disse ao Los Angeles Times.

Além disso, para que os espetadores não se identificassem nem se envolvessem com a história de Charlie Cullen, o realizador explicou à Entertainment Weekly que incluiu apenas os detalhes que Amy sabia sobre o colega. “É a sua perspetiva que acompanhamos ao longo de mais de duas horas de filme”, frisou.

 

A confissão

Inicia-se então uma investigação policial que aponta Charlie como o principal suspeito, com Amy a revelar-se crucial para a sua detenção. A dada altura, a enfermeira aceita jantar com o colega munida de uma escuta, tentando registar o momento da confissão, para que a polícia o prenda. E consegue.

Inicialmente, a polícia parece sentir que existem coisas melhores a fazer do que investigar a morte de uma senhora idosa, que estava doente o suficiente para ser hospitalizada. Porém, depois de a enfermeira se reunir com os representantes do hospital, torna-se bastante claro que a paciente morreu em circunstâncias incertas e que os administradores do hospital sabem mais do que aquilo que dizem saber. Foi precisamente Loughren quem denunciou à polícia que os exames de sangue da mulher sugeriam uma overdose de insulina. E, enquanto a polícia continuava a investigar e o hospital a encobrir, a enfermeira começa a desconfiar seriamente do amigo, que não preenchia os relatórios como devia, fazia observações sem sentido e mal escritas. O sistema interno também mostrava que Cullen passava muito tempo a pesquisar sobre os pacientes de outros enfermeiros.

Em novembro de 2003 Amy recebeu os documentos que mostravam as drogas que Cullen havia pedido e, pela quantidade de medicamentos letais, não havia mais dúvidas. Os documentos foram fornecidos pelos detetives do condado de Somerset, Tim Braun e Danny Baldwin, e Amy concordou em ajudá-los a levar Cullen à justiça.

Em 2003, o enfermeiro confessou os crimes, sem conseguir enumerar com precisão a quantidade de vítimas que morreram às suas mãos. Em 2006, foi condenado por 29 assassínios e recebeu 11 sentenças de prisão perpétua. Atualmente está preso numa prisão de Nova Jérsia, no estado de Nova Iorque.

 

Uma infância miserável

Interrogado sobre suas as motivações para assassinar centenas de pessoas cujos cuidados lhe foram confiados, Cullen dá uma resposta simples no filme: “Eles não me impediram”. Já na vida real, de acordo com o The New York Times, Cullen alegou que cometeu os seus assassínios por “um sentimento de misericórdia”. No entanto, muitas das suas vítimas tinham perspetivas promissoras antes de ele entrar em cena.

Segundo o Times, os primeiros sinais de desvio comportamental de Charles surgiram ainda na juventude. Quando era adolescente, fez diversas tentativas de suicídio, não tendo sequer concluido o ensino médio. No livro de Graeber, lê-se que Cullen contou a Loughren como tinha sido criado numa família católica de origem irlandesa, e que tinha tido uma infância “miserável”. O seu pai era um motorista de autocarros e morreu antes de Cullen completar um ano de idade. Já sua mãe que era uma dona de casa, morreu num acidente de carro quando ele já era adolescente.

Ao largar os estudos, para arranjar uma ocupação, alistou-se na Marinha dos EUA, servindo uma temporada completa.

Depois disso, em 1987, fez um curso de enfermagem e começou a trabalhar num hospital de Nova Jérsia. Também se casou com Adrianne Taub e teve duas filhas. Contudo, o casamento acabou por desmoronar e terminar em divórcio. A ex-mulher interpôs várias providências cautelares para que ele não ficasse sozinho com as filhas, alegando ter medo de que, se ele fosse deixado sozinho com elas podia tirar-lhes a vida a elas e a si próprio. Acredita-se que tenha sido durante esse período que o enfermeiro tenha matado as suas primeiras vítimas.

Logo no primeiro hospital onde esteve empregado, confessou ter assassinado pelo menos 11 pessoas, sendo a primeira um juiz, que recebeu uma dose letal de medicação por via intravenosa. Quando passou a levantar suspeitas na direção, deixou o emprego. As suas demissões ocorriam em função de problemas que ia tendo. Por exemplo, uma senhora reclamou que Cullen continuava a dar-lhe injeções quando já não era o enfermeiro destacado para a tarefa. Outra vez, foi demitido de um hospital porque deitou remédios para o coração para o lixo.

Após a estreia do filme, a 26 de outubro, Amy Loughren deu uma entrevista ao Digital Spy onde disse ser muito emocionante ver Jessica a representá-la há 20 anos e sentir-se orgulhosa do que fez. “Eu não conseguia sentir orgulho até ver a Jessica, porque me culpava. Culpava-me por não ter percebido antes, por ter tido uma amizade com alguém que era tão sombrio. Não consegui perdoar-me por muito tempo, por saber que ele estava a magoar as pessoas mesmo diante de mim”; revelou.

Segundo o Times, O Enfermeiro da Noite é um espelho do verdadeiro crime que é a negligência médica, já que mostra muitas deficiências desastrosas do sistema de saúde americano: entre os altos custos dos cuidados médicos, as disparidades de saúde que afetam desproporcionalmente os grupos marginalizados e o trauma contínuo da pandemia ou as horas extraordinárias dos profissionais de saúde. O facto de Cullen ter conseguido mudar de um hospital para o outro, escapando sempre ileso dos crimes que cometeu, também deixa uma interrogação sobre a gestão das instituições e da razão pela qual acabaram por encobrir os seus passos.