O gasoduto que virou corredor verde

Havia um compromisso firme da construção de três interligações elétricas à Europa, e agora o que temos é o compromisso da construção de uma delas e uma declaração vaga, de intenções, sobre as outras duas interligações.

por Luís Filipe Pereira
Economista, gestor

A situação da guerra na Ucrânia levou naturalmente os países europeus, em especial os do Centro e Leste europeu, a procurar alternativas ao gás natural da Rússia e a resposta óbvia foi o recurso à procura e compra de gás natural liquefeito (GNL).

Os países que produzem e vendem gás natural podem abastecer os seus clientes através de gasodutos (se for possível e economicamente viável) e/ou podem investir em unidades de liquefação e fornecer os seus compradores com GNL, que é transportado por navios (denominados de metaneiros) a temperaturas negativas muito elevadas (-162º).

O fornecimento por GNL exige, assim, que no seu destino, seja regaseificado (ou seja coloca-lo de novo sob a forma gasosa) e introduzido em gasodutos que levam o gás aos seus destinatários finais: empresas e famílias.

O fornecimento por GNL permite, assim, uma maior flexibilidade e diversificação dos fornecedores de gás natural, podendo ser importado de regiões longínquas, mesmo de outros continentes.

A estratégia de introdução de gás natural em Portugal foi delineada e implementada, entre 1991 e 1995, no período em fui secretário de Estado da Energia, sendo ministro o eng. Mira Amaral, e privilegiou primeiro a obtenção de gás natural, vindo da Argélia, por gasoduto, com interligações através de Marrocos e Espanha, para depois, num período posterior, aumentar a diversificação e a segurança de abastecimento, através da construção de um Terminal de Regaseificação, apto a receber GNL, que veio a ser localizado em Sines (por ser um porto ‘de falésia’ capaz de receber os maiores metaneiros).

Quando agora a questão do gás natural se tornou um tiroema dominante na Europa, o primeiro-ministro e o Governo, vieram colocar na opinião pública portuguesa a ideia de que era fundamental, para resolver o problema de abastecimento de gás à Europa, utilizar Sines como porto de entrada da importação de gás liquefeito e enviá-lo, depois de regaseificado, por gasoduto até à Europa, através de novas interligações a construir em Portugal e Espanha.

Esta ideia, em declarações públicas, foi mesmo considerada como decisiva para a emancipação energética da União Europeia.

 

Na verdade esta ideia não faz qualquer sentido pois:

– por um lado, se o objetivo for importar GNL, através da Península Ibérica, regaseificá-lo e enviá-lo para o Centro e Leste da Europa, os Terminais de Regaseificação espanhóis, como Bilbau, Barcelona ou Valência, estão mais próximos do que Sines e portanto não se vê qualquer vantagem económica na sua utilização;

– por outro lado, os países do Centro e Leste da Europa que têm uma maior dependência do gás russo, podem importar diretamente GNL, utilizando os Terminais de Regaseificação já existentes na região, ou instalando novos até em plataformas flutuantes (como a Alemanha está já a fazê-lo) que têm a vantagem de estarem disponíveis a prazos muito curtos;

– a hipotética utilização do gasoduto de Sines esbarraria também na sua atual dimensão, calculada para as necessidades do país e não para a exportação para a Europa;

– do ponto de vista energético e económico, não faz sentido introduzir o gás regaseificado numa ponta da Europa e bombeá-lo até aos países do Centro e Leste europeu. Tal poderá ser justificado porventura em situações de crise, como a que vivemos hoje, mas não como solução normal e estrutural para o abastecimento de gás natural ao restante Continente Europeu.

No entanto, a ideia do reforço das interligações energéticas, entre a Península Ibérica e o resto da Europa, é positiva.

A questão é a de saber se o Acordo alcançado recentemente entre o Presidente francês e os primeiros-ministros de Portugal e Espanha serve o interesse do país e tem as prioridades certas para Portugal.

O primeiro interesse do país consiste na interligação da sua rede elétrica à Europa, através das ligações entre Espanha e França. Isto permitirá que Portugal possa ter um mercado mais alargado para colocar excedentes de eletricidade (o que hoje faz apenas com Espanha).

Estes excedentes são hoje gerados devido à grande proporção de energias renováveis intermitentes (energia eólica e solar) no sistema elétrico nacional: como a produção de energia eólica ou solar tem que ser feita quando a natureza o determina e pode coincidir com períodos em que não é necessária (por ex. à noite nas horas de menor consumo) o resultado é a exportação para Espanha, por vezes a custo quase zero ou zero.

A interligação à Europa permite também, não só criar um mercado mais alargado para colocar produções de eletricidade que venham a ser criadas no futuro, por ex., por novas centrais solares, como igualmente aumentar a diversificação e segurança de abastecimento do país: como há uma grande proporção de energias renováveis intermitentes, o sistema elétrico nacional pode não garantir o abastecimento do país quando necessário, o que leva hoje à inevitável produção por combustíveis fósseis (gás natural) nas centrais elétricas. Ora uma alternativa a esta situação será a importação de eletricidade da Europa (e não apenas de Espanha).

No Acordo agora alcançado entre os três países, está previsto uma interligação elétrica, no golfo da Biscaia, entre Espanha e França e um compromisso «de identificar, avaliar, e implementar novos projetos de interligação de eletricidade que liguem França e Espanha».

No Governo de Passos Coelho tinha sido já alcançado um acordo no qual, para além desta ligação pelo Golfo da Biscaia, havia o compromisso firme da construção de mais duas interligações elétricas através dos Pirenéus.

Ou seja, nesta matéria, que é estratégica para o país, tínhamos uma situação na qual havia um compromisso firme da construção de três interligações elétricas à Europa, e agora o que temos é o compromisso da construção de uma delas e uma declaração vaga, de intenções, sobre as outras duas interligações.

No que respeita às interligações do gás natural, o Acordo prevê a construção de um novo gasoduto marítimo entre Barcelona e Marselha e também uma terceira interligação de gás natural entre Portugal e Espanha através de um novo gasoduto entre Celorico da Beira e Zamora, com um custo estimado de 350 milhões de euros.

Não fazendo sentido as declarações iniciais do primeiro-ministro quanto ao papel do porto de Sines, como ‘player’ fundamental para abastecer a Europa de gás natural, o que correspondia apenas a uma habilidade politica para efeitos junto da opinião pública, a interligação do gás à Europa é agora apresentada como fundamental para o transporte de hidrogénio verde (a produzir em Sines) e de outros gases renováveis (biogás?) criando um ‘corredor verde’ de energia.

O projeto do Hidrogénio Verde está ainda numa fase inicial, com dúvidas em relação aos aspetos técnico e económico, e a recomendação da União Europeia é a de desenvolver apenas projetos piloto que possam, eventualmente, ser escalados, em períodos posteriores.

Por outro lado não é claro quem irá suportar os 350 M de euros da interligação entre Celorico da Beira e Zamora o que pode vir a ser pago pelos consumidores portugueses.

Em síntese, neste Acordo, o Governo falhou em alcançar o que era prioritário para o país, ou seja o compromisso firme da construção das três interligações elétricas e apresentou como uma vitória histórica a criação de um ‘corredor verde’ para o transporte de hidrogénio, projeto numa fase inicial e cujo futuro levanta questões quanto a aspetos técnicos e económicos e de quantidades a transportar pelo gasoduto.

Este Governo com este comportamento demonstra que não tem uma estratégia coerente para o setor da energia.

Em termos mediáticos, o primeiro-ministro fez (mais) uma habilidade politica: passou da fase inicial de afirmar o gasoduto de Sines como fundamental para a emancipação energética da União Europeia e, quando foi evidente que tal não fazia sentido, mudou para a narrativa, que sabe ser bem aceite pela opinião pública e que lhe permite esconder o fracasso na obtenção do que era verdadeiramente estratégico para o país, de que agora o que era fundamental era a criação de um ‘corredor verde’, ou seja o gasoduto de Sines ‘virou’ corredor verde.