O Brasil ainda está de ressaca das eleições, seja da festa ou do choro. Se a eleição de Inácio Lula da Silva tem sido apontada como a «vitória da democracia» pelos seus apoiantes (ver páginas 24-25), tendo a sua campanha resistido a apresentar um programa económico concreto para criar uma frente o mais ampla possível, importa lembrar que de facto vai ser esta figura histórica do Partido dos Trabalhadores (PT) a governar. Terá de conjugar os interesses dispares da metade do Brasil que o elegeu – que vão desde gente mais pobre interessada que faça uma versão 2.0 dos programas sociais e subsídios que marcaram os seus primeiros dois mandatos, até empresários desiludidos com Jair Bolsonaro e que não querem pagar tal despesa pública – e ainda tentar acomodar o resto do Brasil.
«Vamos trabalhar para que a gente possa inclusive restabelecer a paz entre as famílias, os divergentes», prometeu o novo Presidente brasileiro, logo no seu primeiro discurso, na noite eleitoral, perante uma Avenida Paulista em festa e pintada de vermelho. «Não é uma vitória minha ou do PT, mas de um imenso movimento democrático, que se formou acima dos partidos políticos, dos interesses pessoais, das ideologias, para que a democracia saísse vencedora», frisou Lula. «Vamos encontrar uma saída para este país viver democraticamente, harmoniosamente».
Estas declarações, contrastando com a insistência de Bolsonaro de que «a minoria tem que se curvar à minoria», são apontadas como um bom começo, mas a prática pode ser mais complicada. A curto prazo, a polícia ainda terá um trabalho duro a limpar estradas após bloqueios de camionistas bolsonaristas, contestando a validade das eleições. Algo que vai demorar – «basta desligarem o sistema hidráulico e levarem as chaves para tornarem o desbloqueio muito mais complicado», explicou uma fonte na PSP ao i, esta semana, lembrando que «nem mesmo a polícia brasileira terá assim tantos carros para desbloquear esses camiões». E a longo prazo esperam-se bloqueios políticos.
Mas Lula, não fosse conhecido como um um experimentado e astuto operador político, já se mexe. Às suas ordens, dirigentes petistas dirigiram-se a Brasília na quinta-feira, para começarem a negociar com o famoso Centrão, um grupo informal de deputados não-ideológicos, acusados de só quererem trocar votos por financiamento para os seus próprios círculos eleitorais, nomeações al gusto para a direção de empresas públicas e até subornos, tendo tomado controlo de cerca de metade dos assentos no Congresso Nacional nestas últimas eleições. Os dirigentes petistas terão como interlocutor o chefe do Centrão, Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, avançou o UOL. Na agenda estará acabar com o teto nos gastos públicos, que as limita, permitindo a Lula alguma margem para cumprir as suas poucas promessas eleitorais, ou até ir mais além.
Lula, para governar o Brasil, dificilmente o conseguirá fazer sem Lira. Já a escolha de Geraldo Alckmin – o seu vice-presidente, que o petista foi recrutar ao centro-direita – para encabeçar a equipa de transição é apontada como sinal de que o novo Presidente poderá não governar com um programa tão ambicioso como a esquerda que o apoiou gostaria.