O Kremlin anunciou que vai retirar de Kherson, a única capital provincial ucraniana que ocupou desde 24 de fevereiro, que ainda há umas semanas anexara, prometendo que vinha para ficar “para sempre”. O Governo de Kiev, receoso de uma armadilha, apelou esta quarta-feira a que não se faça já a festa. Mas é difícil não ver a admissão da retirada como uma estrondosa derrota do regime de Vladimir Putin.
“Kherson não pode ser totalmente abastecida e funcionar”, admitiu o comandante russo na Ucrânia, Sergei Surovikin, o infame “general armagedão “, falando perante câmaras da televisão e dirigindo-se ao ministro da Defesa, Sergei Shoigu. Os problemas logísticos sofridos pelos invasores não surgiram por acaso. Os ucranianos há meses que se dedicam a bombardear pontes sobre o rio Dnipro com as plataformas de mísseis de longo alcance oferecidas pela NATO, isolando esta cidade na margem oeste e atingindo também todos os pontões que os militares russos iam tentando montar.
A ideia de Kiev era conseguir que os invasores abandonassem Kherson sem ter que a arrasar com bombardeamentos – como tem sido a tática dos russos no Donbass – e sem recorrer a um assalto, evitando os custos horríveis da guerra urbana. Para conseguir atingir mais facilmente a retaguarda russa, ucranianos foram avançando ao longo de meses em redor da cidade, cruzando pântanos fáceis de defender e planícies atravessadas por canais de irrigação, suspeitando-se que tenham sofrido grandes perdas. Mas, verificando-se a retirada, funcionou.
“Nestas circunstâncias, a opção mais sensata é organizar a defesa ao longo de uma linha de barreira no rio Dnipro”, explicou o general Surovikin. “Vamos salvar a vida dos nossos soldados e a capacidade de combate das nossas unidades. Mantê-las na margem direita é fútil. Algumas delas podem ser utilizadas noutras frentes”, justificou.
Contudo, é difícil imaginar que Putin esteja satisfeito, dado que terá sido o próprio a insistir que mais unidades russas fossem enviadas para Kherson, nos últimos meses, contra o conselho dos seus generais, lia-se num relatório do Instituto para o Estudo da Guerra. Estimava-se que uns 40 mil russos estivessem a defender a cidade, explicaram analistas ao New York Times, incluindo boa parte das forças de elite que restavam ao Kremlin. Algo que terá contribuído para criar um buraco na linha da frente russa no sudeste de Kharkiv, sorrateiramente explorado pelos ucranianos, numa espantosa contraofensiva surpresa.
Ações em vez de palavras
Nas últimas semanas, aumentavam os sinais de que estaria a ser preparada uma retirada de Kherson. Desde entrevistas a funcionários locais nomeados pelo Kremlin, passando pelo desaparecimento da bandeira russa que pendia sobre a sede da administração estadual.
Mesmo assim, o Governo ucraniano apelou à calma. “As ações falam mais alto do que as palavras”, frisou Mykhailo Podolyak, um conselheiro de Volodymyr Zelensky citado pela BBC. “Não vemos nenhuns sinais de que a Rússia esteja a sair de Kherson sem lutar”, explicou. E “a Ucrânia liberta territórios com base em inteligência, não em declarações na televisão”.
É que ainda há uns dias o Ministério da Defesa britânica alertava que os russos estavam a produzir obstáculos em massa nas fábricas de Mariupol. Como “dentes de dragão”, uns triângulos de betão desenhados para travar tanques e veículos militares, parte dos quais estariam a ser enviados para Kherson.
“A declaração do comando russo pode significar tanto a adoção de uma medida política como pode ser uma armadilha”, acrescentou Podolyak ao Financial Times. “Pode acabar por ser um tapa olhos antes de sermos arrastados para batalhas urbanas”.