DOHA – Domingo, pelas 16h00 de Lisboa, o olhar de milhões e milhões de pessoas por todo o mundo irá fixar-se nas imagens transmitidas através dos aparelhos de televisão, câmaras assestadas ao Estádio de Al Bayt, com capacidade para 60.000 espectadores, situado na cidade de Al Khor (não levem muito a sério estas designações de cidades já que, por aqui, todos os bairros mais populosos são promovidos a cidades), trinta quilómetros de distância do centro de Doha, e onde irá disputar-se o encontro de abertura da vigésima segunda (e de longe a mais polémica) edição da fase final do Campeonato do Mundo de futebol, com o confronto marcado entre a equipa da casa, o Qatar, e um dos sul-americanos apurados, o Equador.
Ainda há pouco mais de dez dias estava no Equador. As pessoas excitavam-se com a final da_Taça dos Libertadores, agendada para Guyaquil, entre o Flamengo e o Athletico Paranaense de Luiz Felipe Scolari (ganha pelos cariocas por 1-0), e pela final a duas mãos do campeonato equatoriano entre o Aucas, da capital Quito (o antigo clube patrocinado pela petrolífera Shell), e o Barcelona de Guayaquil, o mais popular clube do país. No momento em que abandonei Santiago de Guyaquil para regressar a Lisboa, ainda que numa paragem breve de escala para o Qatar, onde me espera o sexto mundial de uma carreira a caminho do fim, houve muita gente que me perguntava, quase ofendida: “Usted eres periodista y no se queda para la decisión de la Liga?” Pois, não fiquei. E a decisão da Liga doeu no fundo dos habitantes dessa cidade modorrenta que se debruça sobre o Pacífico. Depois de uma derrota em casa, no Monumental Isidro Romero Carbo, por 0-1, os barceloneses não conseguiram melhor do que um 0-0 no Estádio Chillogallo e viram o Aucas conquistar o primeiro título nacional da sua história. Algo de definitivamente inesperado e frustrante para os tão optimistas guayalquileños.
Os dias passaram normalmente, como areia por entre os dedos. A distância entre Guayquil e Doha pode ser, segundo uma consulta rápida, de 14 mil 211 quilómetros, mas às 19h00 deste domingo, Qatar e Equador estão apenas separados por 90 minutos, iniciados localmente às 19 horas, com temperaturas a rondar os 24º centígrados que, convenhamos, não servem para incomodar ninguém que se preze, nem que tenha vindo do Ártico ou da Antártica ou de um diabo de uma região ideal para a procriação de pinguins.
Dar ao pedal
Desde há uns anos largos que o jogo de abertura do Mundial decidiu acolher a equipa da casa – antigamente esse privilégio era atribuído ao campeão do mundo em título, mas o facto dos regulamento obrigarem que esse titular dispute a fase de apuramento, a ideia alterou-se por completo. O Estádio de Al Bayt não vai, certamente, ser palco de um jogo transcendente, até porque os contendores estarão entre os mais fracos que se apresentam na competição. Estamos a falar do 50º (Qatar) e do 44º (Equador) classificados do ranking da FIFA. Para que se faça uma comparação desajeitada (estes rankings valem pouco mais do que meio tostão furado e baseiam-se em algumas premissas dignas de dó), os outros dois adversários do grupo, que entram em campo no dia seguinte, no Al Thumamaa Stadium, pelas 19h00 locais, estão classificados no 14º (Senegal) e 8º (Holanda) do mesmíssimo ranking. Ora, se as coisas fossem assim tão fáceis de fazer, era de apostar de imediato, singelo contra dobrado, como nos livros do Texas Jack, que holandeses e senegaleses estarão de cadeirinha nos oitavos-de-final deste Mundial que tem feito correr não apenas rios de tinta como também rios de lágrimas de crocodilo, apenas porque vai provocar pequenos incómodos em alguns dos campeonatos europeus, ainda por cima, com um tão desesperante como mazombo complexo de superioridade ocidental, nunca vimos um treinador que fosse mostrar-se solidário com os seus colegas brasileiros, argentinos, uruguaios e o diabo a quatro, de cada vez que os seus campeonato eram interrompidos para conforto e bem estar dos clubes do Velho Continente.
Chegou, portanto, a hora. Até ao dia 19 de Dezembro, como costumava dizer o enorme cronista que é Luís Fernando Veríssimo, a hora de começar a dividir a laranja aos pedaços, primeiro em duas metades, que representa o fim da fase de grupos – dia 2 de Dezembro, dia do Portugal-Coreia do Sul (treinada pelo nosso bom amigo Paulo Bento) – e depois, em gomos cada vez mais pequenos até que no domingo, dia 19 de Dezembro, no Estádio Lusail, quase, quase Natal, para quem acredita nessas coisas (aqui fico com a estranha sensação de que alguém me compreende, tão longe vivo dessas imagens que nunca me fizeram sentido de vaquinhas e burrinhos e três reis magos seguindo uma estrela até descobrirem um buraco nos montes de Belém) os últimos dois restantes desta guerra sem quartel que manda impenitentemente para casa os menos competentes, lutem entre si pela posse da Taça do Mundo.
Uma sombra negra parece pairar no céu sobre o Golfo Pérsico e sobre este pequenino país chamado Qatar. Vozes que se mantiveram mudas durante anos a fio, erguem-se agora como augures amaldiçoando o local ímpio onde decorre o primeiro Campeonato do Mundo num país árabe. As queixas, os lamentos e as acusações parecem surgir, convenhamos, extemporaneamente. Houve anos para se discutir os prós e os contras de organizar uma prova desta dimensão num país tão pequeno e que envolve enormes tensões sociais, principalmente no que reporta às vagas de emigração indiana e paquistanesa que surge sazonalmente para se dedicar à construção civil sem quaisquer garantias sejam de que tipo for. Nada mais há a fazer se não utilizar o Mundial, da parte de quem viaja para o Qatar, para mostrar as vantagens de uma ideia mais aberta e mais democrática de encarar o dia a dia. Vendo bem, sejamos concretos: ninguém está obrigado a ir. E convém aceitar, a partir do momento de atravessar a fronteira, que são eles que nos recebem.