Por estes dias, sabe bem retomar palavras de encorajamento que não sejam uma forma de nos conduzir à subserviência. Como estas que Charles Laughton profere no filme de Jean Renoir Esta Terra é Minha (1943): “Temos de parar de dizer que a sabotagem é um erro, que não serve quaisquer fins. Serve, pois. Faz-nos sofrer, passar fome, e leva-nos à morte. Mas, ainda que aumente a nossa miséria, ela irá reduzir a nossa escravidão.” Estas palavras poderiam ter sido ditas por Jean-Marie Straub, que, num dos seus primeiros filmes, Não Reconciliados (1965), a adaptação do romance Bilhar às nove e meia de Heinrich Böll, tem como subtítulo: Apenas a Violência Ajuda Onde Reina a Violência. E Danièle Huillet, que viveu 52 anos ao lado de Straub, até à sua morte, em 2006, e que participou no elenco do filme, teve oportunidade de explicar que nem toda a violência implica o uso de armas. “Também um golpe é uma forma de violência”, esclarecia. “Tomemos como exemplo a utopia, a maior utopia que já houve: que subitamente cada intelectual, homem e mulher, todos fizessem greve e esta sociedade de merda entrasse em colapso. Isso também seria uma forma de violência, e seria, na sua essência, bem mais poderosa que qualquer outro exercício de violência.”
E é importante também lembrar tantas vezes quanto for necessário que a morte de um criador não acarreta que uma obra só possa a partir daí ser encarada da perspetiva de uma espécie de lembrança, quase com nostalgia, quando tudo nela sempre tendeu ao embate. “A revolução é como a graça divina, tem de ser refeita de novo a cada dia, tem de se fazer dela uma novidade todos os dias”, disse certa vez Jean-Marie Straub, cineasta francês que morreu durante a madrugada deste domingo, na Suíça, aos 89 anos. “A revolução não se faz de uma vez por todas e para sempre. E o mesmo se passa no quotidiano. Não há qualquer divisão entre a política e a vida. E parece-me que não temos outra escolha, se queremos fazer filmes que se tenham de pé, estes devem tornar-se documentários, ou têm, pelo menos, de ter as suas raízes no documentário. Tudo deve ser fiel a um princípio de representação correto das coisas, e só então, a partir daí, podemos ir adiante, alcançar uma perspetiva mais vasta.”
Realizador, argumentista, produtor e ator, a carreira de Jean-Marie Straub deixa uma vintena de filmes, na maior parte em coautoria com Danièle Huillet. Os "Straubs", como eram chamados, foram “os pais de uma das obras mais belas e exigentes da história do cinema, caracterizada pela conversão em imagens e sons de textos literários ou musicais, os de autores bem conhecidos como Bertolt Brecht, Friedrich Hölderlin, Johann Sebastian Bach, Arnold Schönberg, Cesare Pavese, Elio Vittorini, Pierre Corneille ou Franz Kafka.” Isto é vincado pelo obituário do diário francês Le Monde, assinado por Mathieu Macheret, crítico de cinema que trabalha também para a mítica Cahiers du Cinéma. "O trabalho de ambos era realizado através de um ofício irredutível, firmemente ancorado num princípio ético e estético, o de reduzir os meios de produção à sua necessidade mais estrita", adianta.
Como um outro crítico (Chris Fujiwara) de cinema notou, “o mínimo que se pode dizer para explicar a razão por que os filmes de Straub e Huillet são tão importantes é que eles incorporam a prática mais rigorosa do cinema de fazer um jogo limpo com os próprios materiais: textos, atores, elementos, paisagens, edifícios. Isso significa: deixar viver o vivo, deixar falar o que viveu.” Daí a rede de conexões com autores e práticas artísticas tão diversas. E Straub explicou que muitas vezes os seus filmes nasciam de uma atitude crítica… “Ou seja, pego em textos que respeito, mas, ao mesmo tempo, como aconteceu com Böll, por exemplo, se há respeito, também me dei liberdade para andar à volta do texto, cortar bastante, e depois apresentá-lo de outra forma para que as audiências pudessem julgar o trabalho que fiz.”
O obituário do Le Monde arranca com uma concatenação de epítetos que desde logo fazem sobressair um carácter que traça, face aos nossos dias, um contraste decisivo na postura e na intenção deste criador. “Marxista, rebelde, intransigente, contestatário, tempestuoso e apaixonado”, Jean-Marie Straub, aparece-nos como uma figura de uma época de toda avessa ao cinismo contemporâneo, e, com a mulher, Danièle Huillet, concretizou uma obra que a Cinemateca, num ciclo realizado em 2018, dizia ser “um dos grandes continentes isolados da História do cinema", considerando que a obra do casal "inseparável acabou por formar um único ser bicéfalo" no qual não deixavam de refletir sobre a própria matéria cinematográfica. Não é só uma obra que se debruça constantemente e levanta elementos a partir de outras formas de arte, como está muito atenta a questões de estrutura, adotando uma atitude de questionamento em que se dá a ver as diferentes camadas e fragmentos, desde as questões da luta de classes, os conflitos políticos e as fraturas históricas, de tal modo que, no entender do crítico Serge Daney, cada filme dos Straubs é um exame – arqueológico, geológico, etnográfico, e também militar – das situações nas quais os homens ofereceram resistência às circunstâncias. No entender de Daney, a “resistência é única indicação que não nos engana, que atesta sobre a firmeza de uma ou outra realidade, que aponta para um nó de contradições. Trata-se, num sentido freudiano, de um sintoma. Onde se encontra resistência, temos a obrigação de o documentar.”
Os filmes realizados por esta dupla foram confrontando de forma consistente o período conturbado do pós-guerra na Europa, começando no rearmamento da Alemanha, expondo as camadas da história para revelar a continuidade da violência do passado no presente. Trazendo à superfície esses nódulos ou episódios de resistência e examinando relações de classe e poder, este é um cinema comprometido com a crítica marxista do capitalismo e que se exprime por meio de uma gramática de extremo rigor, mas também de beleza e paixão, que não se limita a impor ideias ou noções pré-concebidas, mas atravessa fronteiras linguísticas e territoriais, recupera textos clássicos e atualiza-os, ao mesmo tempo que reinventa a própria abordagem cinematográfica, num esforço para seduzir e capturar inteiramente a atenção da audiência. Os filmes refletem a própria atitude do casal, uma criatividade que se liga profundamente a um sentido de proximidade e generosidade, tendo mantido laços muito fortes com as pessoas e as comunidades com quem foram trabalhando, de tal modo que o crítico Louis Séguin assinalou como Straub e Huillet são membros de “um clã não-hierárquico e sem fronteiras de rebeldes apátridas e de desajustados sociais, sendo que o desafio do seu cinema corresponde a essa irredutibilidade permanente”. Preferindo, quase sempre, atores não profissionais, os seus filmes não estabelecem recortes da realidade para produzir ficções totalitárias, mas assumem esses recortes ou fragmentos, de tal forma que as pessoas e a realidade filmadas não se submetem à câmara. Como notou Fujiwara, nestes filmes as pessoas têm muitas vezes o olhar lançado para além do enquadramento, e estão sempre a evitar ser retidas, e é num sentido de respeito por este sistema que os Straubs aprenderam com o teatro de Brecht que os seus atores permanecem na sua própria pele, mesmo quando falam em nome de alguma personagem. “Não há nos seus filmes aquela intimidade fingida, nem há espaço para esse falso tráfico com a vida interior das pessoas; o que ali se discute é a vida pública, política, trabalho, a vida mundana, as atividades de que as pessoas se ocupam…”
O vincado pendor marxista deste cinema, leva a uma abordagem materialista que mantém com o mundo filmado uma relação ética e política, e, por essa razão, a obra Straub-Huillet é exemplar no seu rigor e no modo como nela se firma uma simbiose entre estética e ideologia. “Enquanto marxista, Straub está empenhado na sabotagem dos tradicionais ideais de autoria e génio individual”, escreve o crítico Dave Kehr. “Não há criatividade no vácuo para Straub e para os produtores de um cinema materialista: a arte é produzida através da interação de forças históricas e humanas, e Straub enfatiza este ponto selecionando fontes e sujeitos que parecem propositadamente irrelevantes para as suas preocupações políticas.” Em outubro de 1975, na intervenção que fez ao participar numa mesa-redonda organizada pelo Festival da Figueira da Foz intitulada “O cinema pode ser uma arma”, Straub deixou muito clara a sua visão: “A burguesia não inventou uma linguagem, eu creio que ela se priva dessa linguagem, guardando para si os meios do cinema e fazendo-o parar ao nível da representação, do ‘contar de histórias’, do adormecer das pessoas, de lhes dar gato por lebre… O que eu tento fazer no meu cinema é dar-lhe gato por gato e lebre por lebre e isso vai ao encontro da […] ideia de fazer falar as pessoas, oferecendo o texto sem entoações, sem interpretações. […] A dialética não existe no interior do filme, mas entre o filme e o espectador.”
Tendo nascido em Metz, França, em 1933, e educado num meio em que as culturas francesa e alemã andavam lado a lado, inicialmente Straub o que começou por ambicionar foi tornar-se escritor. Foi quando tinha 17 anos, ao ver Les Dames du Bois de Boulogne (1945), de Robert Bresson, que pressentiu que a melhor forma de canalizar as suas energias seria escrevendo para o cinema, não se imaginando então a contribuir senão nos guiões. Estudou literatura no Lycée Fustel-de-Coulanges, em Estrasburgo, obtendo depois o bacharelato na Universidade de Nancy, e foi em novembro de 1954, após mudar-se para Paris, quando eclodiu a revolta argelina, que conheceu Danièle Huillet. Estavam numa aula preparatória para o Instituto dos Altos Estudos Cinematográficos, no Liceu Voltaire, do qual Straub acabou expulso após três semanas. Nessa altura, conheceu também os "Jovens Turcos" dos Cahiers du cinéma, incluindo Jacques Rivette, François Truffaut e Jean-Luc Godard, futuros cineastas da Nouvelle Vague.
Straub morre dois meses depois de Godard, também em Rolle, pequena comuna suíça nas margens do lago de Genebra, e esta proximidade permite assinalar esse compromisso comum com um cinema que preferiu agonizar em salas vazias mantendo acesa a velha paixão crítica, contrariando e golpeando um público que exigia cada vez mais que o cinema fosse outra montra para ver o seu reflexo misturado no desfile das suas representações ilusórias e consumistas. Como notou Serge Daney, Straub e Huillet “nunca gozaram de grande sucesso (com a exceção talvez de Chronik der Anna Magdalena Bach, 1967), mas os seus filmes causaram alguns sustos. Esta forma de se entregarem a um cinema que não faz concessões – no que toca ao corpo como à alma – está simplesmente nos antípodas das teorias de comunicação branda e de direcionamento sistemático para os públicos de acordo com o quadro do mundo do espectáculo. Demasiado duro, simples demais. Ainda por cima, os Straubs tiveram ainda a malícia de nunca apresentarem o seu trabalho como ‘marginal’ mas – e a nuance importa – como minoritário. Eles nem sequer estão num gueto, mas de onde eles estão, seguram-se ao cinema como ao fio de Ariadne.”