LUSAIL – “Aqui fica o futuro do Qatar”, afirmam perentoriamente. Dizem Luseil. Um orgulho. Finalmente um lugar com pedaços verdejantes. Os arquitetos ficaram à vontadinha para fazer o que lhes desse na gana: prédios circulares, um deles gigante, com uma espécie de olho no meio; outro em forma de chifres; quatro torres cilíndricas, duas delas mais estreitas em baixo do que em cima. O futuro do futuro! A cerca de 20km de Doha, para norte, junto ao mar, acreditam os daqui, a capital do país dentro de vinte anos, embora, a meu ver, com o ritmo a se constrói por aqui, nessa altura já não se distinga uma cidade da outra. A Universidade do Qatar ajuda a que muitos jovens venham preferindo mudar-se para cá. Arin, indiano, de Kerala, de Tiruvananthapuran (Trivandrun é mais simples), 19 anos, entra para o ano na faculdade. Veste uma camisola do Messi mas, ao saber-me português, fica incomodado e diz: “C’mon Ronaldo!” Saiu-me um bom troca-tintas. Faz questão de se explicar: “Agora vou ver a Argentina. É a segunda equipa por quem torcemos, depois de Portugal”. Hummm… Topa-me a desconfiança: “Sim, sim! Eu sou do Kerala Portugal Fans Club!” Chama um amigo para o apoiar nesta vexata questio. Mostra-me o Facebook no telemóvel: tem uma foto com a camisola de Portugal, tão de contrafacção como a que tem vestida à minha frente. “Gosto do Ronaldo e gosto do Messi. O nosso grupo (pelos vistos tem cerca de 14 mil seguidores) junta-se para ver os jogos na televisão. “De Portugal, da Argentina e do México! Hoje é um dia especial”. Apanham o metropolitano – linha vermelha – e demoram meia hora até ao impressionante estádio que tem a forma de um barco em dourado. De um dos dhows típicos do Mar Arábico.
Há cerca de 700 mil indianos no Qatar – 21,8% da população. Arin já é da segunda geração, filho da que veio antes trabalhar para a construção civil, o maior negócio da região após o do petróleo e, igualmente, por causa do petróleo. “Ainda não nos deram cidadania, mas para mim vai ser mais fácil do que para o meu pai porque ele com a idade vai deixar de trabalhar e voltará para casa. Eu não. Eu vou ficar aqui para o resto da minha vida. Vou estudar química”, conta Arin. O amigo usa uma t-shirt barata do Uruguai. Também serve. Não entram no estádio, não há dinheiro para isso. “Estamos a aproveitar para ir às fan-zones. É divertido, conhecemos gente, vemos os jogos no ecrã grande”. Ninguém lhes paga um Ryal (são 25 cêntimos, ou por aí), podem estar certos, são uns pândegos, diz-se e escreve-se muita coisa sobre tudo e um pardal. Que, por acaso, aqui não há. Só tenho visto rolas. Por entre estes emigrantes que foram chegando com uma mão à frente e outra atrás, e ainda por cima precisaram de usá-las para acartarem tijolo e cimento, começa a aparecer uma nova classe, talvez incomodativa, e por isso o governo qatari tanto resista a entregar-lhe a carta de cidadania. Alguns até já nasceram por cá e têm projectos de vida que não passam, certamente, por se agarrarem a uma pá e um escopro. Nunca irão percorrer as largas avenidas de Doha em vaidosos Bentley e Rolls Royce como as centenas de parentes da família Al Thani que domina a região e controla a massa bruta de dinheiro que escorre por entre os dedos de alguns como… grãos de areia, precisamente. Mas farão questão atingir um estatuto que lhes dê o direito de comprarem bilhete para verem um jogo, qualquer que ele seja.
Camisola de Super-Homem
É já amanhã que Portugal entra em campo frente ao Gana, pelas 19h00 de cá, no Estádio 974, também conhecido por Ras Abu Aboud. É, de longe, o mais bocejante de todos – para quem gosta de um estádio bem desenhado, e há no Qatar estádios bonitos aos pontapés. Rectangular. Sem arabescos, se o termo vem a propósito. Os pândegos da estação de metro de Msheireb que se perdem na carruagem apinhada de sauditas, vão vestir a camisola do Ronaldo, prometem. Vistam o que lhes apetecer e divirtam-se, que isso é que importa. Isso e que Ronaldo vista a sua velha camisola de Super-Homem e leve os companheiros consigo no regresso a uma crença em qualquer coisa de especial que nos vem fugindo, a pouco e pouco, desde a Noite das Traças de 10 de julho de 2016, em Saint-Denis, quando o vimos ser indecentemente abatido, aos 25 minutos, por um fulano nascido na Ilha da Reunião e chamado Payet. Demorou muito, mas mesmo muito tempo, para que a bola (e a Premier League) conseguissem aquilo que os britânicos nunca conseguiram no tempo do Raj: pôr indianos a gostar de futebol. Para eles, no geral, é críquete e ponto. A comunidade indiana do Qatar, maioritariamente vinda do Estado de Kerala, o mais a sul, encanta-se mais pelas figuras do que pelas equipas no seu todo. Ronaldo, Ronaldo e Ronaldo, mas também Diaz e Zilva e Canzelo, assim vão pronunciando o nome dos lusos do City. E Messi, mesmo que este nunca tenha jogado em Inglaterra e ontem tenha tido de suportar o desagradável incómodo de perder para a Arábia Saudita. Espera-se que Ronaldo consiga melhor do que o seu rival de sempre. Amanhã logo se vê.