Quando se lançou a nova linha de produtos da Apple, em setembro, ressoaram aplausos e ovações sob as paredes de vidro do futurista auditório Steve Jobs, em Cupertino, Califórnia. Apresentaram-se novos Apple Watch e Airpods, especulou-se quanto à investigação para veículos autónomos ou óculos de realidade virtual. E, claro, conheceram-se as novas versões do iPhone, responsável por mais de metade das receitas da empresa mais valiosa do planeta.
“As pessoas adoram o iPhone”, gabou o CEO da Apple, Tim Cook. “É uma parte importante da sua vida quotidiana”, continuou. Mas a nova linha sofreria problemas de abastecimento, admitiria a Apple meses depois. É que, para chegarem às mãos dos fãs, quatro em cinco dos novos modelos teriam de ser produzidos por operários chineses trancados numa fábrica em Zhengzhou devido às políticas de “tolerância zero” face à covid-19. Gerando enorme revolta na fábrica, com confrontos violentos com a polícia, nesta terça-feira.
Vídeos divulgados nas redes sociais mostram centenas dos mais de 200 mil trabalhadores da maior fábrica de iPhones a protestar, encurralados por seguranças e polícia de choque vestidos com fatos de proteção contra ameaças biológicas. Alguns dos operários foram atirados ao chão e espancados com bastões, outros lançavam gritos de “lutem pelos nossos direitos”, traduziu a BBC. Os mais exaltados esmagaram vidros e câmaras de vigilância, até conseguiram furar as barricadas. Sendo filmados a cercar um carro da polícia e a tentar virá-lo, berrando de fúria.
Até esta quarta-feira a chamada “iPhone city”, na província de Henan, no centro da China, estava a funcionar como habitual, garantiu a empresa proprietária, Foxconn Technology Group, um gigante tecnológico sediado em Taiwan. Mas o Natal baralhou-lhe as contas. Demasiados queriam oferecer novos iPhone 14 e iPhone 14 pro – os preços começam nos 1009 e 1349 euros em Portugal, respetivamente – e isso levou a Foxconn a recrutar mais cem mil trabalhadores, segundo o South China Morning Post.
Não foi fácil, dado esta fábrica estar há meses em regime de “bolha”, limitando as idas a casa dos funcionários para evitar surtos de covid-19, forçando muitos até a dormir nas instalações. Como tal, a Foxconn tentou atrair mão-de-obra prometendo quadruplicar os seus bónus este mês. Mas esta quarta-feira os operários queixavam-se que esse dinheiro nunca apareceu, avançou a CNN. Os novos operários deram por si trancados na fábrica e tentaram sair, desesperados, criando o caos a que se assistiu.
Alguns dos recrutas da Foxconn estavam em pânico. Até por alegarem estar a ser misturados com antigos funcionários, que já estavam trancados na fábrica quando houve um surto de covid-19, no final de outubro. Na altura, mais de duzentos trabalhadores da “iPhone city” fugiram das instalações a pé, subindo vedações de arame farpado, avançou o Washington Post. Receberam boleia, abrigo ou até comida de residentes nos arredores. Enquanto autoridades locais de Henan organizavam autocarros para ir apanhar trabalhadores e deixá-los em centros de quarentena, tentando evitar que houvesse surtos quando regressassem a casa.
Isolados do mundo Os investimentos da Apple e dos seus fornecedores na China em tempos eram acenados como bandeira pelo regime de Pequim, quando este procurava investimento estrangeiro. O governo local de Zhengzhou, uma das regiões mais pobres da China, investiu o equivalente a mais de 1,5 mil milhões de euros para expandir a “iPhone city”, construindo dormitórios, estradas e outras infraestruturas nos arredores, segundo o New York Times, contando ainda com incentivos fiscais significativos do Governo central.
Em pleno funcionamento, estas instalações poderiam produzir 500 mil iPhones por dia, mas a pandemia mudou o cenário, Os operários que ficaram na fábrica após o confinamento enfrentaram um trabalho cada vez mais duro. É difícil de imaginar o stress vivido nestas “bolhas” que lá vão mantendo a indústria chinesa estável e a funcionar, de maneira a que possamos comprar bens de consumo produzidos com mão-de-obra barata.
“Não sei quanto mais tempo consigo aguentar”, testemunhou Xiao, um operário de uma fábrica a norte de Xangai, falando ao Financial Times no início deste mês. A comida é péssima, a acomodação também e o cansaço cresce. “Sou um ser humano, não uma máquina”, desabafou.
Não que os fornecedores da Apple sejam os únicos a recorrer a fábricas em circuito fechado. As instalações da Tesla em Xangai também funcionaram em “bolha” entre abril e junho, quando esta megacidade entrou em confinamento.
Entretanto, a empresa pioneira no mercado de carros elétricos até conseguiu completar a expansão da sua capacidade de produção em Xangai, em setembro tendo como propósito fabricar 22 mil unidades dos seus Model 3 e Model Y por semana, avançara a Reuters. Estando a apostar forte no mercado interno da China, lançando campanhas de publicidade na televisão, algo pouco comum para a Tesla.
Já a Apple segue o rumo contrário da Tesla. A covid-19 , a disputa por dominância na indústria de microprocessadores entre China e EUA, bem como tensões geopolíticas em Taiwan, mostraram a Tim Cook que não diversificar os fornecedores seria um risco. Daí que a Apple invista cada vez mais em fábricas na Índia ou Vietname.
Aqui, o confinamento na “iPhone city” até tem sido visto como um golpe de sorte. O Governo indiano vê na “tolerância zero” à covid-19 da China “a oportunidade de uma vida”, assegurou Akshobh Giridharadas, conselheiro do US-India Strategic Partnership Forum, à Fortune.
A Índia, conhecida pela oferta mão-de-obra jovem, barata, cada vez mais qualificada, “está a acelerar políticas que lhe darão vantagem à medida que as empresas cada vez mais diversificam as suas cadeias de abastecimento”, explicou Giridharadas. Isso pode significar regras laborais ainda mais relaxadas, mas também aproveitar a promessa de gigantes tecnológicos conseguirem entrar no emergente mercado interno indiano.
Enquanto a viragem não suceder, fãs do elegante design da Apple continuarão a queixar-se que demoraram a chegar os iPhones que compraram. Só porque os operários que os produzem foram trancados dentro da megafábrica de Zhengzhou.
“Perdemos muitos clientes por causa disso”, lamentou Michael Phillips, gerente de uma loja de produtos eletrónicos da cadeia Best Buy. Explicando à Reuters que a escassez é sobretudo nos iPhones de gama alta, que demoram pelo menos duas semanas a chegar. E se pretendes um bem de luxo como o iPhone 14 Pro Max, “não vais ficar satisfeito com algo que não tenha as especificações que queres”, notou.