Com Sónia Peres Pinto
Os moradores descrevem-na como uma pequena vila pacata, onde toda a gente se conhece e quem cá chega é recebido com um sorriso. As casinhas brancas, ordenadas com pequenos apontamentos de azul índigo, amarelo, ou castanho, e o sotaque que se ouve, não enganam ninguém. Estamos em Cuba, no Baixo Alentejo, onde normalmente o dia-a-dia é vivido com calma e boa disposição. Porém, a manhã de quarta-feira quebrou a serenidade a que os moradores estão habituados, quando 35 pessoas foram detidas numa megaoperação da Polícia Judiciária (PJ), por suspeitas de escravizarem centenas de emigrantes em campos agrícolas. Em causa estão crimes de tráfico de seres humanos, associação criminosa e ainda branqueamento de capitais.
Segundo as autoridades, as vítimas eram atraídas com o pretexto de melhores condições de vida e de trabalho em Portugal. E, de acordo com aquilo que uma fonte policial confirmou à Lusa, a rede era formada por estrangeiros, nomeadamente famílias romenas, e contavam com alguns portugueses que lhes davam apoio. “As várias dezenas de vítimas de nacionalidades romena, moldava, marroquina, paquistanesa e senegalesa eram contratadas para explorações agrícolas em Beja, Cuba e Ferreira do Alentejo entre outros locais”, avançou a fonte. O i foi falar com moradores e comerciantes, que revelaram cenários violentos e de bastante precariedade. Um morador da Vidigueira, que arrenda uma casa a trabalhadores romenos garante que estamos perante uma atividade da máfia.
Clima de Medo No Café e Pastelaria “O Cantinho”, na Rua Miguel Bombarda, o movimento é igual a todos os dias. Segundo o proprietário, desde que a vaga de imigração para a zona aumentou, que tem tentado manter o ambiente o mais “português possível”. Apesar de dizer que esta situação não o afeta, o proprietário admite que, na casa ao lado, no n.º14, vivem mais de 30 pessoas. “São romenos e moldavos maioritariamente”, detalhou, alertando que “nos últimos meses a vaga de imigração para a nossa terra parece que quase triplicou”. De acordo com o mesmo, os imigrantes costumam juntar-se na rua, em frente à porta, e há quem tenha medo de por ali passar. “Ontem, por exemplo, uns miúdos tinham saído do café e voltaram atrás para me pedirem que ficasse à porta a vê-los passar a rua. Disseram que tinham medo porque os romenos tinham-se metido com eles”, revelou. O proprietário acredita que já são 200 a 300 imigrantes em Cuba, de inúmeras nacionalidades. “Às tantas até fico com medo de andar na rua!”, reforçou. Interrogado se tem conhecimento da forma que estas pessoas aqui chegam, o proprietário suspeita de um nome: “Acho que trabalham para uma senhora que se chama Lena, é famosa aqui em Cuba. Dizem que é ela que os traz e explora-os. Às tantas foi uma das detidas nesta megaoperação”, afirmou.
Já Maria Teresa (nome fictício), moradora da mesma rua, admite que a situação a tem perturbado bastante. Estamos perto do Centro Cultural. “Aqui, mesmo em frente da minha casa, moram muitos imigrantes. São pessoas de todo o lado. Por aquilo que sei, quando chove, o trabalho pára, não podem ir. Acolhem-se nos cafés onde apanham um pouco de internet para se entreterem. Ouço alguns, não falam português. Compreendem uma palavra ou outra, mas é muito complicado”, contou a moradora, acrescentando que os vê mal alimentados. “Vejo sair muitos daquela casa, não sei como é que são as condições, mas são degradantes, porque eles não têm uma vida boa”, continuou. Segundo Maria Teresa, há um grupo de romenos que pára em frente à sua casa, principalmente durante o fim de semana. “Já tenho chamado a Guarda. Eles passam-se, batem uns nos outros, cortam-se… Mas sempre uns contra os outros. Chateiam-se por qualquer coisa. Claro, já estão cheios de bebida… É esse o resultado. Eles não têm dinheiro para comer, mas os trocos que têm vão para tabaco e bebida”, lamentou. Várias noites, a senhora teve de se levantar para intervir e pedir silêncio: “Houve noites em que a música esteve aos altos berros. Já eram 3 e 4 da manhã. Fui lá e dei um berro. Eles têm crianças naquele sítio. Eu sou uma pessoa já com uma certa idade que precisa de tomar medicação para dormir e infelizmente nem assim consegui descansar”, explicou, dizendo que, a dada altura, a polícia deixou de lá ir, pois já sabia o que ia encontrar. Porém, segundo Maria Teresa, é importante reforçar que nem todos têm esse tipo de comportamentos: “Há dias falei com um deles, com alguma dificuldade, e percebi que era um jovem de apenas 19 anos. Devia ser moldavo ou romeno. Disse-me que lhe pagam 100 euros por mês, que está cá sozinho e que o dinheiro não dá para nada. Até me deu dó, era tão novinho. Disse que o convenceram que cá ia ganhar muito, que era melhor. Agora, andam a penar. É muito triste”, lamentou.
A rede Depois da detenção, os emigrantes foram ouvidos pelas autoridades em instalações improvisadas, numa tenda azul com o símbolo da PJ. No local estiveram ainda três contentores e uma unidade móvel descaracterizada que ocupam um dos parques de estacionamento do Parque da Cidade, à entrada de Beja. De acordo com as autoridades, a rede, considerada a maior a operar em Portugal, era organizada a partir de Beja, mas tinha ramificações no centro do país e terá angariadores a partir de outros países, nomeadamente da Roménia, Moldávia, Índia, Senegal, Paquistão, Marrocos, Argélia, entre outros. E, pelo que o i apurou, há mesmo quem fale de máfia.
“Isto é um problema que é transversal, já nem digo a todo o país, mas de todo o Alentejo. Posso-lhe dizer que, na Vidigueira – que é onde eu vivo –, há movimentações estranhíssimas nas barbas de toda a gente”, começou por revelar um morador da Vidigueira que aluga casas e preferiu manter o anonimato. Segundo o mesmo, há muito tempo, não só em Cuba como também na Vidigueira, que se começou a ouvir falar de estranhos sinais de riqueza, e as pessoas começaram logo a ficar “sob suspeita”: “Vamos à Vidigueira e vemos inúmeros carros caríssimos com matrículas romenas”, continuou, acrescentando saber, de fonte segura, que se trata da máfia. “Arranjam trabalho às pessoas, mas cobram percentagens ao trabalhador quando vem para cá”, lamentou.
O morador da Vidigueira alugou uma casa a uma família romena que veio para cá trabalhar. “Conheci-os através de outra pessoa, simpatizei com eles e decidi alugar a casa temporariamente. É um casal, a filha e dois sobrinhos. Mais ninguém. A casa é enorme, se calhar estão numa casa assim pela primeira vez”, admitiu, frisando que a alugou com a regra de não entrar lá mais ninguém. “Essas mesmas pessoas acabaram por me confessar que estão por debaixo daquela alçada. São trabalhadores”, adiantou, afirmando que isto “é uma prática comum que está em instalada”. Ou seja, para si, “as pessoas que os trazem para cá são estrangeiros”. “Não conheço nem desconfio de portugueses envolvidos nisto. Agora… Romenos com grandes carros a viverem em casa com montes de gente, não é normal”.
No final da tarde de quarta-feira, a polícia encontrava-se precisamente na rua onde Artur Ramalho via os carros em questão. “Devem tê-los apanhado de manhã e agora estão a vir apreender os carros”, sugeriu.
Segundo aquilo que lhe chega aos ouvidos, o esquema é: “Os indivíduos querem sair do país onde estão e, o indivíduo que cá está, arranja alguém que tenha uma empresa propondo-lhe que a cada imigrante que empregar, com o qual fizer um contrato de trabalho, ganha 15 mil euros, por exemplo”, explica o morador, afirmando ainda acreditar que essa deveria ser a posição da Lena, nome sugerido pelo proprietário do café “O Cantinho”. Depois, mesmo que não exista trabalho, “não interessa”. “Portanto, se ele se dispõe a dar 15 mil euros à entidade portuguesa que lhes faz esse trabalho, imagine quanto é que recebe de cada um… Os outros se não têm o dinheiro, propõem-se a vir trabalhar para cá e ir pagando a dívida. Por isso, têm dono”, lamenta Artur Ramalho.
Apesar de reconhecer que esta situação é de “extrema gravidade”, o mesmo interroga-se sobre se estas pessoas estarão realmente a ser escravizadas. “Há aqui empresas de estrangeiros que eu conheço, que são gente de bem, mas que são empresas de subcontratação completamente legais. Não vejo ali escravidão. Saem cedo de casa, mas chegam cedo também. Agora, com contratos, sem contratos… Isso não sei”, fez questão de frisar.
Nesta megaoperação a PJ realizou 65 buscas domiciliárias e não-domiciliárias que culminaram na detenção de 35 pessoas, maioritariamente homens. Os suspeitos têm idades compreendidas entre 22 e os 58 anos e têm nacionalidade estrangeira e portuguesa.
A investigação da PJ iniciou-se há cerca de um ano e teve como foco a angariação por esta rede criminosa de trabalhadores estrangeiros com a promessa de emprego e habitação, tal como afirma Maria Teresa e o habitante da Vidigueira.
Na megaoperação estarão cerca de 400 inspetores. O juiz Carlos Alexandre encontra-se também a acompanhar as diligências no terreno o que está a deixar Artur Ramalho (nome fictício) bastante chateado. O também morador de Cuba considera que a situação “não é assim tão grave quanto a que estão a pintar”. “Ao desviar o Carlos Alexandre para estas coisitas, fazem-no desviar-se dos casos grandes. Deixem-no lá tratar de coisas sérias e deixem estas, que estão aos olhos de toda a gente. Não é preciso vir para aqui. Vem-se entreter com os pequeninos quando temos casos muito mais importantes para tratar. Coisas menores! O Carlos Alexandre não tem tempo para estas coisas pequeninas que qualquer outro juiz pode tratar!”, exaltou ao telemóvel com o i.
Interrogado sobre a forma como estas pessoas vivem e a precariedade laboral a que estão sujeitas, Artur Ramalho responde com uma outra pergunta: “Estas pessoas não são pagas, estão a ser escravizadas, mas vão ao supermercado comprar comida? Não percebo nada disso”. “Para isso é que servem as Finanças! As Finanças vão à procura deles para controlar quem paga, quem não paga, quem passa recibos… A segurança social também. Agora, não é meter a Polícia Judiciária a chatear as pessoas! Isto está tudo preto no branco! É aqui em Cuba e no país inteiro. Acham que esta situação se resolve aqui? Somos uma terra pequenina. Comparando com Ferreira do Alentejo isto não é nada, ou com Odemira”, rematou.
Problema nacional Para o secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) este problema não se resume apenas ao Baixo Alentejo e alarga-se a todo o país, onde há falta de mão-de-obra para o setor. “Sei que isto não acontece só no Baixo Alentejo também acontece em outras zonas do país. É um problema generalizado e deve-se à necessidade de mão-de-obra. Esta ação de fiscalização só foi no Alentejo, mas não é só um problema desta zona é um problema de todo o país, onde há necessidade de mão-de-obra”, diz ao i Luís Mira.
O responsável considera que estas situações que foram detetadas “são lamentáveis e não são aceitáveis”, lembrando que “são redes de tráfico humano que Portugal não pode permitir e que tem que combater”. Mas alerta: “Como em tudo há casos em que os agricultores têm a noção disso, mas pode haver casos em que nem sequer tenham essa noção, mas não podemos tratar todos da mesma forma”.
E para evitar estas situações, Luís Mira lembra que a CAP tem celebrado com o Governo protocolos para virem trabalhadores estrangeiros para esta área de atividade. “Celebrámos um protocolo com Marrocos que envolve o IEFP para fazer um projeto piloto em 2023 com 400 trabalhadores. Esses trabalhadores têm formação tanto cá, como lá e são pessoas que chegam ao nosso país com outro tipo de enquadramento e com outras garantias, em que há a possibilidade no caso de as coisas correrem mal terem uma linha de apoio, para onde podem chamar a atenção disso e penso que assim são criadas as condições para que estas situações de não se repitam”.
Casos antigos É certo que esta situação detetada hoje não é novidade no setor. O primeiro alerta para situações de escravidão em terrenos agrícolas ocorreu, em Odemira, em 2021 onde foram denunciadas situações de escravatura, tráfico humano e auxílio à imigração ilegal, com alguns trabalhadores a relatarem condições próximas de trabalho forçado e precárias.
O problema ganhou maiores dimensões com a covid-19 em que foi decretada a cerca sanitária nas freguesias de São Teotónio e Longueira / Almograve devido ao elevado número de contágios. E as imagens de contentores, onde muitos desses trabalhadores viviam fizeram correr muita tinha. Nessa altura, muitos trabalhadores foram alojados temporariamente noutras instalações – o Governo chegou a avançar com requisição civil no empreendimento Zmar – mas a maioria acabou por rumar a outras regiões, na rotação do trabalho agrícola sazonal”.
Na altura, Luís Mira garantiu que os empresários agrícolas não tinham a responsabilidade de saber onde dormiam os seus trabalhadores. “Os empresários não têm responsabilidade nisso. O Estado que fiscalize”, chegou a afirmar ao nosso jornal, acrescentando que “um emigrante quando vai trabalhar para um país não quer descansar à sexta, sábado e ao domingo. Quer trabalhar ao máximo porque o foco dele é ganhar o mais que conseguir”. E a mesma receita aplica-se ao pagamento de uma casa.
Ainda assim, reconheceu que havia contentores “com ginásio, com duas pessoas por cada contentor e com ar condicionado”, garantindo que “não dormem assim nem no Nepal, nem no Bangladesh”. E deu como exemplo de contraponto as obras que estavam a ser feitas na ponte da nova ferrovia, em que os contentores não apresentam essas condições.
*Com Sónia Peres Pimto