Em Sangue & Mármore decide explorar um conceito que nunca tinha trabalhado, uma áudio-novela, de onde é que surgiu o conceito para fazer um disco deste estilo?
David Bruno: Apesar de ser uma estrutura diferente, o conceito é semelhante aos meus discos anteriores, onde sempre existiu uma história por trás do álbum. No entanto, a história era uma pequena parte do álbum em relação à música, mas neste, a música é uma parte mais pequena em relação à história.
Quando é que teve a ideia para criar esta história repleta de mistério?
DB: Isto foi algo mesmo típico da pandemia. Estava fechado em casa, com muito tempo livre e privado de uma das minhas principais inspirações: os cafés e os restaurantes onde costumava ir. Comecei a passar muito mais tempo à janela a observar a minha vizinhança. A ideia desta narrativa surgiu por causa de um "casarão" que está situado mesmo à frente da minha casa. Parece um daqueles palácios à portuguesa, com estátuas de mármore de meninos a urinas, os azulejos da vindima na parede, o nome da vivenda e da senhora, dragões na chaminé… achei piada e comecei a criar uma história em torno deste imaginário. Foi também o que aconteceu nos outros discos, como foi o caso do Adriano Malheiro, que me levou a criar o Miramar Confidencial.
As personagens que surgem no disco são fragmentos da sua imaginação ou são pessoas reais?
DB: Todas as personagens que aparecem nesta áudio-novela são pessoas que existem e que me inspiraram, apesar de, obviamente, não terem o mesmo nome. Então, comecei a fazer este exercício, de criar música à volta de uma história, mas com esta mais aprofundada e com mais detalhes. Durante uma série de semanas, ia diariamente à janela e ficava a olhar e a pensar. Com este processo, escrevia um capítulo que podemos ouvir no disco. A certa altura, já tinha uma história demasiado grande e a única coisa que me restava fazer era "apagar as pontas soltas", não podiam existir incoerências neste policial. Era assim que me entretinha durante os dias de pandemia, era muito terapêutico (risos).
Considera este um álbum "escapista"?
DB: Pelo menos na forma como foi criado, sim. Algum tempo depois de ter criado esta história decide seguir o caminho mais preguiçoso e, em vez de a escrever, gravei-a. Durante uma tarde de forma muito descomprometida. Aliás, se ouvires o álbum com atenção, até é possível ouvir os cliques do rato quando eu acabo de falar, eu deixei-os ficar de propósito para passar esta ideia de ser um trabalho mais amador.
E quando é que pensou acrescentar a música a este trabalho?
DB: Depois ter esta história toda narrada pensei, à semelhança das novelas, de criar uma banda sonora para cada uma das personagens.
Enquanto músico, não foi estranho colocar de parte a arte que tem trabalhado ao longo dos anos em detrimento de outra expressão artística?
DB: Não, já nos trabalhos anteriores que tinha feito nunca foi só música, com exceção com o disco de David & Miguel, que era composto exclusivamente de canções. O processo foi semelhante. Existe uma história que abre opções para criar músicas, neste a única diferença foi ter dedicado mais tempo e esforço à história, que também é algo que me agrada muito e que já tinha vontade de explorar há muito tempo.
Estava a falar sobre a pandemia, foi um período complicado?
DB: De início, foi muito difícil. Muita da alegria que obtenho ao longo dos meus dias é quando visito os cafés e fico a ouvir as histórias das pessoas e isso foi algo que desapareceu completamente. Estava fechado em casa repleto de ansiedade com o que se estava a passar. Até posso dizer que este exercício salvou a minha vida durante a pandemia porque andava sempre entretido a pensar nesta história.
Marco Duarte: Além disso quando o confinamento começou era quando tínhamos agendada uma tour de doze datas, que tiveram de ser todas canceladas. Foi tudo mau nesse período.
Como é que o Marco reagiu quando o David lhe disse que iam fazer uma áudio-novela?
MD: Primeiro comecei a receber os áudios do David a narrar a história. Estava descansado em casa e recebia estas mensagens inesperadas, só conseguia pensar "ele não está bem" (risos). Mas depois de ouvir várias vezes as histórias comecei a entrar na ideia e começou tudo fazer a fazer sentido.
DB: Ainda antes de criar as músicas, enviei estes áudios a várias pessoas, inclusive ao Rui Reininho e à Gisela João, que diziam que conheciam várias pessoas na vida real como as personagens que criei. Isso deu-me muito alento para continuar com o projeto e que fazia sentido partilhar com o público.
Vocês têm alguma ligação com áudio-novelas?
DB: Mais com telenovelas e as suas bandas-sonoras, especialmente com esta lógica de "Tema de …".
MD: Tanto que até criámos um genérico para esta telenovela. Todo o ambiente de novela está presente neste disco. Às vezes não sei se deve ser considerado uma áudio-novela, uma radionovela, mas gostei da forma como o descreveram no Curto-Circuito: "uma peça de arte".
DB: A título de curiosidade, uma das grandes influências para Sangue & Mármore é uma telenovela que o meu avô costumava ver quando vivia em França, onde esteve muitos anos emigrado. Depois de almoço, ele dizia-me sempre que tinha de ir ver um episódio dos "Fogos do Amor". Durante o confinamento decidi ir pesquisar e descobri que ele andava a ver o "Les Feux de l'Amour", que era uma telenovela norte-americana chamada "The Young and the Restless" que começou em 1971 e continua até aos dias de hoje, tem mais de 12 mil episódios, e é uma das novelas mais longas de sempre. Se ouvires o genéricos dessa novela e aquilo que decidi fazer na minha acho que podes encontrar muitas semelhanças (risos).
Mas a áudio-novela é um formato que costumam consumir?
DB: Já ouvi alguns projetos que adorei, mas nunca tinha pensado fazer. Ouvi uns trabalhos feitos por uns colegas que estudavam na ESMAE, no Porto, que não eram tanto ligado à música, mas mais à sonoplastia e à criação de efeitos sonoros. Não era bem isso que queria fazer no meu trabalho, queria adaptar este formato ao meu mundo.
Sente que para além de escapista este também é um álbum nostálgico?
DB: Este álbum é muito nostálgico. Sinto que isto foi um exercício muito típico da pandemia, de recordação e de lembrar-me de todas estas pessoas que, de alguma maneira, se identificavam com as histórias que estava a criar.
MD: Mas qualquer trabalho de David Bruno a solo é sempre um pouco nostálgico. É uma marca que temos vindo a criar ao longo dos nossos lançamentos.
DB: A nostalgia é o clickbait dos portugueses (risos).
Estava a falar do seu avô, ele foi uma inspiração para este trabalho?
DB: Ele não serve de inspiração para os personagens, o seu maior cunho neste trabalho foi ter-me apresentado a esta telenovela.
A sua família foi uma inspiração para o seu álbum de 2020, Raiashopping, eles foram uma influência para ter seguido uma carreira musical?
DB: Não, o oposto até para ser sincero (risos).
MD: Na verdade, acho que existe uma influência mesmo que não seja possível observar diretamente. O avô do David é uma pessoa muito especial. A primeira vez que o conheci estávamos os três a subir de elevador com o cão do avô do David, a certa altura entra uma senhora que lhe diz que não pode ter o cão no elevador. Ele perguntou porquê e a senhora disse que o dono do prédio não deixava. E ele disse: "mas sabe quem é o chefe do prédio? O chefe sou eu".
DB: Não era (risos).
MD: O David conta muitas histórias do avô, por isso, acho que intuitivamente acaba sempre por ter uma influência na sua vida.
DV: Em termos de portugalidade inspira-me muito. Podia estar aqui a tarde toda a contar histórias dele.
MD: O teu avô era perfeito para ir a um programa do Fernando Alvim, ele ia adorar conhecê-lo (risos).
Esta áudio-novela tem muitas inspirações de filmes noir, houve filme ou série que fossem uma grande inspiração para este trabalho?
DB: Há um filme que vi uns tempos antes de começar a trabalhar neste disco e, se ouvirem o Tema de Sandra, vais logo fazer a associação. O filme é uma espécie de Kill Bill da Loja dos 300, chamado Perdita Durango, realizado pelo Álex de la Iglesia. Neste filme, o Javier Bardem é um bruto que vive no deserto do Nevada e a Rosie Perez é uma bandida e, juntos, raptam pessoas para as matar em rituais. Este "Tarantino barato" foi uma grande inspiração para Sangue & Mármore.
Esteve a explicar que as bandas sonoras da telenovelas foram uma influência para a criação das quatro músicas deste álbum, mas houve algum artista em particular que o tivesse inspirado neste processo?
DB: A música é feita para alimentar os temas das personagens. Estava a fazer uma música a pensar que era destinada para uma pessoa que eu inventei e que sabia tudo sobre elas. As bandas sonoras tiveram um grande papel, porque foi daí que retirei muitos samples, mas neste trabalho, continuam a existir muitas referências subtis à música popular portuguesa. Por exemplo, no Tema de Crespo quando digo "perdoa-me, minha Santa mãe, perdoa-me", isso é um grande clássico do Graciano Saga (risos).
MD: Mesmo quando escolhemos os convidados foi por inspiração de música popular portuguesa, por exemplo, o Tema da Sandra é inspirado na música Diz-me Diante Dela de Nelo Silva & Cristiana.
DB: O videoclip dessa música é inspirado não só na Diz-me Diante Dela, onde é possível ver uma mulher a espreitar o marido entre garrafas, mas também na Garçon do Marante.
Quem também teve um papel importante foi o Olivier Bonamici, comentador da Eurosport, que inspira a voz do narrador do álbum e com quem teve oportunidade de trocar umas mensagens.
DB: É engraçado como a internet proporciona este tipo de contactos. Desde a primeira vez que o ouvi a comentar que fiquei hipnotizado pela pronúncia dele, franco-portuguesa, que não é a pronuncia de um imigrante português, é a pronuncia de um francês a falar português. A primeira vez que o ouvi a relatar foi uma Campeonato Africano das Nações nos anos 2000 e fiquei impressionado com o seu sotaque. Agora, quando decidi fazer a áudio-novela, achei que o francês iria ajudar um toque noir à peça.
Algumas das peças mais importantes deste trabalho são os seus convidados, como é que fizeste o casting para as músicas?
DB: Era algo que já estava feito à algum tempo. Todos eles eram músicos que já me tinham abordado e confessado que gostavam do meu trabalho. Fui abordado pelo Reininho depois de ter participado no programa Alta Fidelidade que me veio perguntar como é que estava Mafamude. Fiquei "strarstrucked". O Alvim também teve um papel fundamental, ele estava-me sempre a dizer "O Reininho está sempre a falar bem de ti, enquanto ele tem saúde convida-o para fazer música" (risos). Estava só à espera do contexto certo. Não contava que fossem aceitar este convite tão estranho, mas de alguma forma todos se identificaram com as personagens e a sua cultura e quiserem participar. Achei por bem convidar e apresentar um convite diferente daquilo a que eles estavam habituados.
Como foi colaborar com um mestre como o Rui Reininho? Aprendeu alguma coisa com ele?
DB: Sim, a simplificar a vida. Para o Rui Reininho é tudo muito fácil (risos). Também tem um sentido de humor muito peculiar, não podia dizer era 90% das coisas que diz em privado porque era cancelado (risos). Não é nada de mais, mas é um humor muito negro.
MD: Em três takes, já tínhamos gravado as partes todas dele.
DB: Perguntámos se queria melhorar alguma parte, mas ele disse que não valia a pena, era para mostrar que era humano.
Também contou com a Gisela João neste trabalho, como foi conciliar o fado com a sua linguagem musical?
DB: Foi muito fácil. Apesar de ela estar mais ligada a esse estilo, ela está habituada a estes projetos mais fora da caixa. Quando lhe contei a essência da personagem Sandra Isabel ela adorou porque disse que conhecia muitas "Sandras Isabéis". Ela também ficou muito ligada à música porque uma das músicas que toca no seu backstage é a Diz-me Diante Dela, ela é uma grande apreciadora da música romântica e popular.
Se pudesses contar com outras vozes femininas nos teus próximos trabalhos quem é que gostavas de convidar?
DB: Há uma rapariga de Gaia que não é muito conhecida e que faz back vocals nos Expensive Soul, a Helena Neto. Ela canta mesmo muito bem. Gravei à uns tempos um tema com ela, para um projeto que sairá brevemente, e, um dia, gostava muito de voltar a colaborar com ela. Também sou muito fã da Leonor Andrade dos Lefty, ela tem muito estilo e também se enquadra nesta onda de filmes noir ou franceses.
O Marlon dos Azeitonas também participa no disco. Apesar de ele vir de um background mais ligado à música comercial, como foi conciliar estes dois universos?
DB: Foi muito interessante, ele foi o único convidado que criou a sua própria letra. Tem sido um dos mais entusiasmados com este álbum. Acredito que, para quem trabalha há muito tempo na música, receber estes convites para fazer coisas diferentes devem de saber bem. Um dia vou chegar a esse ponto também. Se aparecer alguém com quem me identifico pessoalmente e com a sua música e me convidar também estarei interessado em ajudar.
Uma das caraterísticas mais interessantes da música de David Bruno é como você nos consegue transportar para os sítios sobre os quais está a cantar. Sente que, ao estar preso em casa, foi mais difícil imprimir essa sensação neste trabalho?
DB. Não acho, porque quando criei a história pensava em muitos sítios específicos. Por exemplo, no filme que acompanha a áudio-novela, é possível ver todos os locais que eu falo nas músicas, como o Zoo de Santo Inácio a bomba de gasolina da Prio de Avintes… Depois de criar o álbum passei algum tempo a aperfeiçoar este trabalho porque queria colocar ainda mais detalhes. No caso dessa bomba de gasolina, eu falo sobre comer folhados mistos nesse sítio e isso foi uma observação que fiz por estarem sempre a sair fornadas desse produto (risos). Passei muito tempo em cada um destes sítios para que a sensação que queria deixar fosse a mais correta.
Acha que a zona do Porto podia ser mais bem aproveitada para filmagens de filmes ou séries?
DB: Acho que todo Portugal podia ser aproveitado melhor em termos de registos visuais porque temos muitas paisagens espetaculares.
House of the Dragon foi filmado em Monsanto.
DB: Monsanto? Se fosse Macedo de Cavaleiros também dava (risos). Ou então podias gravar Game of Thrones no Sabugal, na boa. Existem zonas que podiam ser melhor aproveitadas. A zona onde vivem os meus avós, Figueira de Castelo Rodrigo que inspirou o Raiashopping, é perfeita para gravar spaghetti westerns.
Estamos a ter esta conversa porque vão apresentar o vosso novo disco ao Super Bock em Stock, o que podemos esperar desse concerto?
DB: Vai ser um medley total do trabalho que temos vindo a desenvolver. Vamos tocar as músicas todas de Sangue & Mármore, com os convidados, os temas antigos, com a presença de Mike el Nite e António Bandeiras e vamos contar com um novo elemento em cima de palco, um teclista, Mohamed da Costa.
Como é que vão conciliar o conceito de áudio-novela neste espetáculo?
DB: Neste concerto não vou fazer a narração, até porque não tenho duas horas para estar a tocar. E se estivesse a fazer a narração, as pessoas que vinham a correr para ver o concerto estavam lá dez minutos e iam-se embora (risos). Já fizemos uma apresentação do disco em Avintes, agora vamos fazer uma coisa diferente.
E não planeia voltar a fazer este tipo de concertos?
DB: Depois deste álbum ter saído, recebi várias propostas e convites de pessoas que trabalham em teatro, séries… para transformar este disco num projeto mais complexo. Ainda não sei se vai acontecer alguma destas propostas, mas com tantas ideias em cima da mesa acredito que alguma coisa vai acontecer fora deste universo puramente musical. Até porque seria um pouco egoísta da minha parte estar a recriar o Sangue & Mármore em palco e estar a chamá-lo de concerto, tinha de ser outra coisa. Isto é algo que gostava de fazer desde o início, mas para o qual não tenho capacidade.
Estava a falar em fazer um projeto diferente, via-se a afastar ainda mais da sua zona de conforto e, por exemplo, realizar um filme?
DB: Por enquanto, temos estes projetos em curso, mas era algo que faria. Gostava de fazer tudo, experimentar não custa. Se não gostar, olha… é vida. Mas, para já, nos próximos tempos, vou estar ocupado com outros projetos ligados a este álbum.