Al-Rayaam – O passo foi dado. Inseguro, mas ainda com o Paraíso no olhar, como cantaria o Jorge Palma, até porque Portugal comanda o grupo destacado. E, no entanto, depois daquele jogo tão, tão chato durante a primeira parte, logo em seguida transformado numa montanha russa, ou num comboio fantasma, se preferirem, que até meteu a barraca das farturas (para a Feira Popular ficar completa) dada por Diogo Costa já nos descontos e que não promoveu o empate do Gana por distração divina, fica a pairar a ideia de que ainda não será desta que se livrará do estigma das presenças bisonhas nas fases finais desde 2016.
Desde a noite gloriosa de Saint-Denis – onde a alegria portuguesa brotou inesperadamente de um estilo de jogo irritantemente defensivo – que Fernando Santos se tem visto perante um dilema com o qual vai ter de lidar até ao final do seu percurso: justificar essa vitória um bocado à Pirro (o general macedónio que depois de receber os parabéns pela vitória na Batalha de Ásculo, desabafou – «Mais uma vitória destas e estou perdido!») com um crescimento de qualidade nas exibições que sustentasse o peso de carregar com essa medalha ao peito. Tal como toda a gente desprezou a vitória da Grécia no Euro-2004, não pela justiça da mesma mas pela pobreza do espetáculo, o triunfo lusitano só foi mesmo exacerbado por nós, ainda que, lá no fundo, todos sentíssemos que teria sido mais agradável, como dizer?, ganhar de outra forma.
O dilema do engenheiro agravou-se com o decorrer dos anos e após as eliminações perfeitamente evitáveis face a Uruguai (2018) e Bélgica (2022). Ainda por cima, começou a dispor de uma série de jogadores jovens muito interessante, de grande qualidade, e com sucesso nos clubes para os quais emigraram. Ou seja, se em França engolimos aquele pontapé-do-Éder e 120 minutos de sucessivas cargas do exército francês, agora não há quem não exija um futebol que nos orgulhe, mesmo que, no final, continuemos sem ganhar, como antigamente. Temos saudades de uma certa elegância e não nos revemos no futebol-carpinteiro. Os adeptos pedem a Fernando Santos aquilo que talvez seja impossível: que faça o mesmo que em 2016 jogando como em 2000 ou 2004. Esquecendo-se, pelo caminho, que esse não é, de todo, o estilo do engenheiro.
Uma questão fundamental
Paira a sensação de que toda a massa crítica que observa a seleção nacional com atenção está convencida de que temos um grupo de jogadores do melhor que se pode encontrar entre todas as equipas que participam neste Mundial do Qatar. Mas será mesmo assim? Escrevo estas linhas na bancada de imprensa do Estádio Ammad Bin Ali, em Al-Rayaan, enquanto o Irão de Carlos Queiroz defronta o País de Gales. É tão indispensável ver futebol ao vivo como conhecer o Craft! Lembram-se? N’ Os Maias. O João da Ega para o Carlos: «Ó menino! Tu não conheces o Craft?! É indispensável conhecer o Craft!». Deixem a televisão de lado. Ela não nos dá a verdadeira velocidade e intensidade dos movimentos, impinge-nos uma noção errada da dimensão dos jogadores. E é ao vê-los, mesmo aqui à nossa frente, que podemos sentir as suas virtudes e debilidades. A pergunta deve ser posta: é Portugal uma equipa assim tão boa? Não se trata de discutir a Pátria, caramba!, embora a Pátria também deva discutir-se, ao contrário da vontade do Senhor das Botas. Perante um conjunto de força bruta como o do Gana, com jogadores da largura de embondeiros, tornou-se muito nítida a debilidade física de um conjunto de pesos-leves com João Félix, Bruno Fernandes, Bernardo Silva e Otávio. Eram como moscas a bater contra a vidraça. Uma coisa é encaixá-los num grupo onde possam fugir aos confrontos individuais, deixando que os colegas façam o trabalho de pedreiros e dando-lhes liberdade para se fixarem só na bola, outra é formar com eles todos em campo uma massa poderosa que pudesse chocar de frente contra os ‘arranha-céus negros’ que pareciam feitos de baquelite.
Depois há a questão da liderança que assenta apenas em Ronaldo quando Pepe não está. Nem Félix, nem Otávio, nem Bernardo – Bruno Fernandes teve um pouco no primeiro ano de United mas parece ter perdido – voz de comando sobre os companheiros e, sinceramente, também não me parece que queiram ter. Lá está! Como disse atrás sobre o engenheiro: não faz o estilo deles. Para complicar, no jogo do estádio dos contentores – 974 dizem eles, uma construção manhosa que, pelos vistos, já foi vendida aos uruguaios e seguirá, após terminar o torneio, para Montevidéu – os dois defesas do City, Cancelo e Rúben Dias, estiveram francamente desconcentrados, permitindo que nascessem nas suas costas os dois golos dos ganeses, baralhando a equipa e deixando-a descontrolada. Aqueles últimos 20 minutos foram de engolir camelos. E foi precisamente nessa fase do jogo, de cabeça perdida, que Portugal marcou e sofreu, com toda aquela confusão tática de um lado e do outro que dava a sensação de estarmos a olhar para o ecrã de um eletrocardiograma.
Segunda-feira, pelas 19h00 de Lisboa, será a vez de Portugal voltar a medir forças com o Uruguai. Entra em campo com um avanço agradável – 0-0 no Uruguai-Coreia do Sul – e até pode ser que o empate abra as portas da qualificação. Mas não é com passos inseguros que se caminha para o Paraíso. Nem que seja o do olhar.