Bob Dylan. Cartas de amor juntam-se ao museu de letras mortas da Lello

Agora que a Livraria Lello conquistou para o seu espólio de naturezas-mortas as cartas que Robert Zimmerman escreveu à namorada dos tempos de liceu por mais de meio milhão de euros, além de alguns outros casos de artigos de lendas da música que atingiram somas consideráveis em leilão, recordamos alguns aspetos do percurso de Bob Dylan,…

É difícil perdoar-lhe a monstruosidade do talento. Nalgum momento, mesmo os fãs casuais que foi acumulando, sentiram o arrepio de algum dos tantos seixos que ele foi lançando numa dança que se perpetuaria à superfície do imaginário popular antes de se afundarem, firmando na intimidade de muitos os mitos mais fulgurantes da idade em que nos formamos, ou até desses momentos dispersos que cosemos no avesso da pele, como um mapa, para nos embalar o tempestuoso ardor por meio do qual, nas horas mais desconsoladas, ainda ansiamos por uma prova de que persiste em nós um desejo de alcançar a verdadeira vida. Aos 81 anos, mais do que uma aberração da longevidade criativa, Bob Dylan mantém ainda firme o nó de contradições que fez dele um génio que soube resgatar-se sempre a tempo de evitar que fizéssemos dele o mesquinho duplo de si mesmo.

E o que não lhe perdoamos? O seu fabuloso carácter elusivo, a sua capacidade de rejeição desse narcotizante delírio que nos leva a procurar figuras que possam expiar os pecados coletivos de gerações que falharam o encontro consigo mesmas ou até traíram as suas aspirações. Dylan não se deixou embalsamar no museu da nossa admiração, recusou ser algo mais parecido com esses atos itinerantes fazendo da sua música um recital de feirantes, passando pela nossa terra para um exame anual à próstata nostálgica. Bandas como os Rolling Stones que acabam por se tornar “infalíveis jukeboxes” que tocam as versões imutáveis do que foram nos dias em que primeiro nos arrebataram.

A maioria de nós acaba por ter saudades de si mesmo e de um tempo que parecia menos cínico, por isso, tantos procuram ainda os sinais de frágil semelhança de Dylan com aquele miúdo com o cabelo num arranjo espinhoso, mas sedutor como os ícones pré-rafaelitas e ainda com aquele sorriso escarnecedor e ao mesmo tempo divertido, como uma Mona Lisa que desdenhasse dos rostos e expressões que a encaram com uma intensidade desnecessária, própria de visitantes de museu, incapazes de exprimir o seu próprio ridículo. Depois de um certo ponto, o sucesso é sempre um veneno que tende a imobilizar qualquer ídolo, condenado a tornar-se um penoso maneirista ou a parodiar-se a si mesmo.

Às tantas, o próprio Dylan notava que havia demasiada extática à sua volta, e que esta lhe tinha entrado na cabeça, nos nervos, sentindo-se incapaz de se libertar dessa sensação. “Onde quer que eu esteja, sou um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk-rock, um encantador de ritmos e palavras de uma era há muito perdida, um fictício chefe de Estado de um país que ninguém sabe onde fica. Estou no poço sem fundo de uma cultura amnésica e gaguejante. O que quer que te ocorra, já fui acusado disso, e não consigo limpar o meu nome.” Mas se recuarmos mais de seis décadas, podemos vencer esta maldição melancólica e obter um vislumbre do rapaz numa altura em que tudo eram ainda proposições aventurosas à espera que um vento se lembrasse de chamá-lo para fazer do seu nome um rumor consumindo as estradas.

Na semana passada, a Livraria Lello anunciava a aquisição de um conjunto de 42 cartas escritas pelo punho dele entre 1957 e 1959, tendo o lote sido arrematado por mais de 500 mil euros, num leilão dias antes, em Nova Iorque. "Mais de 150 páginas manuscritas pelo Prémio Nobel da Literatura pertencem agora ao espólio da Livraria Lello", lê-se num comunicado divulgado pela loja que se viu transformada num empório onde os livros entram como naturezas-mortas para serem apreciados na sua condição mais esvaziada de sentido, enquanto os visitantes se aglomeram nas suas salas, enchendo-as e esvaziando-as como sombras, “exercitando-se na futura estância definitiva que será o grande Museu da Humanidade, do mundo, em que cada qual é uma natureza-morta – rostos como fruta colhida da árvore e disposta num prato…” (Claudio Magris).

No mesmo comunicado, e em sinal da ânsia de reivindicar o ostentoso troféu, a livraria revela ter licitado "este tesouro por 535 mil e 900 dólares (519 mil 330 euros), o que corresponde a mais do dobro do valor inicial pelo qual foi colocado à venda". Mas o tom de fanfarra, com a sua ênfase pomposa, depois não combina bem com o aspeto mais sentimental da aquisição, e soa quase trocista a forma como a Lello explica o valor das cartas, vincando que estas "revelam as emoções de uma paixão adolescente, e os sonhos e aspirações do autor".

O lote será exibido a 13 de janeiro de 2023, dia em que a livraria celebra 117 anos, e na continuidade de um espólio que é em si mesmo uma salgalhada e que serve para puxar lustro a uma casa que, desvitalizada a sua função por se ver transformada em pólo de atração turística, já se conformou com a perspetiva de ser mais outro templo fetichizado, um museu com essa vocação que passa mais por se expor a si do que expor qualquer outra coisa. As cartas serão assim mais um elemento decorativo, capturado e reduzido a uma condição totémica, a intimidade daquele Robert Zimmerman como uma borboleta de cores garridas atravessada por um alfinete e imobilizada atrás de uma vitrina,  as aspirações do miúdo que vivia em Hibbing, no Minnesota, e que elaborava sobre os seus projetos e fantasias em missivas endereçadas à namorada, Barbara Ann Hewitt, anunciando, entre outras coisas, como pensava mudar de nome e tinha a ambição de vender um milhão de discos.

As cartas foram descobertas pela filha de Hewitt após a morte desta, em 2020. Além das 42 cartas nunca antes tornadas públicas, e dos envelopes, há um postal de Dia dos Namorados descrito pela Billboard como “sumptuoso”… Não tendo, para já sido reveladas quaisquer transcrições, sabe-se que nas cartas Zimmerman inclui poemas e até interroga a namorada quanto aos nomes que se imaginava a usar para fins artísticos. Na altura as hipóteses eram Little Willie ou Elston. Bod Dylan ainda teria de esperar mais uns anos para fazer a sua apresentação ao mundo. Mas o namoro terminou, e Barbara Ann passaria o resto dos seus dias em Hibbing, ali casando e vindo a divorciar-se mais tarde, no final dos anos 1970. Não voltaria a casar, e, segundo a filha contou aos representantes da RR Auction, anos antes, chegou a recusar-se um convite que Dylan ainda lhe endereçou já no auge da celebridade, no final dos anos 1960, para que se reunisse a ele na estrada.

Agora, mais de seis décadas depois, Dylan continua a escrever, a gravar canções e a atuar para salas esgotadas um pouco por todo o mundo no que há muito vem sendo conhecida como a sua Never-Ending tour. Desde então, tornou-se objeto de estudo, e há até um museu que lhe é inteiramente dedicado, em Tulsa, no Estado do Oklahoma. Todos os anos avoluma-se a bibliografia passiva dissecando quer os anos de adolescência e juventude em Hibbing quer o período em que fazia as rondas em Greenwich Village, em Nova Iorque, alimentando-se de tudo o que captava o seu fenomenal apetite, permitindo-lhe alargar o seu vocabulário musical, e tocando em todos os palcos disponíveis, permitindo-lhe desenvolver num curto espaço de tempo essa lendária personagem que misturava elementos de trovador, poeta Beat, Huckleberry Finn e Charlie Chaplin.

Entretanto, vendeu os direitos musicais de todas as suas canções (mais de 600) num negócio que lhe terá rendido mais de 300 milhões de dólares. Já este ano, voltou a gravar um dos seus maiores clássicos num novo formato áudio que foi anunciado como “o pináculo da alta fidelidade”. Levada também a leilão, a gravação foi arrematada por 1,7 milhões de euros. Já antes desiludira tantos fãs ao participar em anúncios para marcas como a Cadillac ou a Chrysler, a IBM e a Victoria’s Secret, criou uma linha de whiskeys de bourbon e centeio chamada Heaven's Door, que chegou a promover no "Tonight Show", e recentemente aderiu até ao fenómeno dos N.F.T.

Não faltam aqueles que, como o poeta Manuel António Pina, entendem que algures pelo caminho a mística de Dylan se desvaneceu, acabando por render-se ao aspeto mais imundo do negócio. Mas talvez tudo não passe de um tremendo equívoco, pois há muito que ele veio contrariando essa rigidez de uma certa moral que continua, apesar de tudo, a ser propugnada como uma resistência aristocrática pelos artistas. Afinal, Dylan sempre soube que não há como sobreviver às fantasias e delírios de um mundo desolado e sempre à procura de profetas. “Qualquer que fosse o rumo da contracultura a um dado momento, há muito que eu me fartara das suas manias. Fartei-me da forma como as minhas letras eram extrapoladas, o seu significado se via subvertido para dar origem a polémicas e a forma como uma e outra vez fui ungido o Grande Bubba da Rebelião, Sumo Sacerdote do Protesto, o Czar da Dissidência, o Duque da Desobediência, Líder dos aproveitadores, Kaiser da Apostasia, Arcebispo da Anarquia, o Grande Queijo.”

No fundo, Bob Dylan anda há décadas a submeter os papéis de demissão, a alforriar-se de todas as causas, regressando as origens para beber algum ânimo entre as fontes da tradição e da cultura popular para depois sair em debandada ele e as suas infinitas personagens e criações naquele vitalismo niilista que acabou por se demonstrar a única forma de manter o espírito à tona perante um mundo onde parece ser melhor vender-se do que entregar-se ao delírio moribundo de uma qualquer forma de fé.

 

 

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Missiva colérica de Lennon a McCartney

Por estes dias, um artigo que se espera que em breve seja levado a leilão e que tem gerado alguma cobiça entre colecionadores e melómanos é uma carta endereçada por John Lennon a Paul McCartney e em que ressuma do silêncio da tinta o som e a fúria de um momento mais conturbado na relação entre os dois ex-Beatles. Irado com uma entrevista que McCartney deu em 1971 sugerindo (entre outras coisas) que Imagine não era um tema político, que os problemas de negócios dos Beatles não eram culpa dele e que Lennon e Yoko eram um bocado chatos, Lennon revidou com uma feroz resposta que se alonga por três páginas e que fará corar os espíritos mais contemporizadores. Espera-se que a carta arrecade cerca de 33 mil dólares em leilão (sensivelmente o mesmo valor em euros).

 

A guitarra favorita de Cobain

A Fender Mustang de 1969, guitarra de Kurt Cobain que ficou gravada no imaginário de gerações ao ser envergada como uma metralhadora musical no vídeoclip desse hino do grundge que é Smells Like Teen Spirit foi arrematada em leilão por 4,5 milhões de dólares. “De todos as guitarras que há no mundo, a Fender Mustang é a minha favorita”, disse Cobain, que se serviu dela em muitas apresentações ao vivo, com o seu som a poder ser ouvido nas gravações de Nevermind e In Utero.

 

Teste de prensagem do primeiro disco de Elvis

Se o sucesso pode trazer recompensas fabulosas, uma delas será certamente a capacidade de um músico adquirir uma peça que pertenceu a outro músico, como um teste de prensagem do primeiro single de Elvis, My Happiness, que, tendo sido levado a leilão em 2015, acabou por ser arrematado por 300 mil dólares. O comprador foi Jack White, metade da dupla de rock norte-americana The White Stripes e um ávido colecionador de discos de vinil exclusivos. Mais tarde, White lançou a gravação com o seu selo, Third Man.

 

Estátua de ouro em tamanho real de Michael Jackson

Uma estátua de ouro em tamanho real de Michael Jackson com o seu amado chimpanzé de estimação, Bubbles, foi vendida por quase 7,5 milhões de dólares em 2001. A obra de arte esculpida pelo famoso artista Jeff Koons e projetada em 1988, foi originalmente vendida nesse ano por 250 mil dólares, mas acabou por triunfar e tornar-se a peça mais cara entre o museu de excentricidades que se acumularam à passagem de Jackson por este planeta, onde muitos ainda acreditam que esteve apenas de visita vindo de um outro ponto afastado do cosmos.

 

Manuscrito da obra-prima de Mahler

Entre os artigos mais cobiçados pelos grandes melómanos, num culto que vai para lá da cultura popular, impondo-se no campo da música erudita, temos a partitura da Segunda Sinfonia de Gustav Mahler, que foi comprada por 7,8 milhões de dólares. O manuscrito completo e inalterado da segunda sinfonia do compositor – conhecida como Ressurreição – foi vendido em novembro de 2016 num leilão inglês. Trata-se de um documento de 232 páginas que data de 1817 e foi arrematado por um particular que não quis ser identificado.