Do alto dos seus oitenta anos, o Presidente Biden chamou os jornalistas e gravou uma chamada de apoio aos jogadores de futebol dos Estados Unidos.
Não precisou de ir ao Qatar.
Dir-se-á que não podemos comparar as coisas, que o futebol em Portugal é um assunto superlativo, que o Ronaldo é tudo.
Mas por aqui as coisas correm de modo diverso, como se a honra da nação estivesse em jogo, como se a imagem da seleção nacional não fosse suficiente e necessitasse da companhia dos órgãos de soberania.
Todos, sublinhe-se, Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, primeiro-ministro.
E, não comparando, não resistimos a dizer que é um exagero.
Note-se que não falámos até aqui do problema dos direitos humanos e do seu desrespeito, dos direitos laborais e da sua ignorância, dos contornos negociais obscuros que hoje tanto se exautoram.
O apelo a este problema é, apenas, na ribalta a que foi trazido, uma questão de oportunidade.
Os países livres que respeitam e praticam a democracia e a liberdade têm momentos de grande indignação e momentos de silêncio.
A mundialização da economia, as complexas relações de equilíbrio de poder, as conveniências, varrem muita coisa para baixo do tapete, fazem de conta, olham para o lado. Ou, então, erguem as vozes e condenam mas não cortam os laços.
Acontece tal coisa em cenários muito diversos.
Por exemplo.
É a União Indiana a maior democracia do mundo. Sim, mas como conciliar a democracia com a vigência do regime de castas?
Alguém recusa os avanços tecnológicos que consegue e a apetência pelo seu mercado?
Alguém recusaria vender armas a um país como este, economicamente poderoso e rico em matérias primas?
Há eleições na Nicarágua, em Cuba, na Venezuela, pois há.
Mas porque é que os opositores são perseguidos e presos e impedidos de concorrer?
Ninguém compra o petróleo venezuelano? Ninguém faz turismo em Cuba?
A China invadiu o Tibete, persegue a minoria uigur, tem uma interpretação muito particular da democracia, da economia livre, da liberdade.
Ou seja, coloca o Estado como capitalista mor, faz do capitalismo próprio instrumento de poder, faz do seu líder o émulo do líder eterno.
Os países democráticos não compram os componentes que a China fabrica, não adquirem os produtos tecnologicamente evoluídos e os outros todos que a imensa legião de trabalhadores chineses fabricam?
Os países democráticos não permitem a compra de participações sociais de empresas nacionais?
A EDP não pertence, em grande maioria a capital chinês?
O Paquistão, como a China, respeita a humanização do trabalho?
E não compramos, nós todos, os têxteis fruto da exploração?
A Rússia interveio em vários países, colocou no poder governos, invadiu a Crimeia, envenenou opositores, perseguiu meios de comunicação social.
Mas, ao mesmo tempo, vendeu gás em boas condições, tornou a Europa dele dependente, comprou aviões, instalou fábricas de produção automóvel, manteve sempre relações económicas de grande proximidade.
Os Estados do Golfo são democracias? Não perseguem, não discriminam?
E ninguém lhes compra o gás e o petróleo?
Nunca se visitaram responsáveis destes países? Nunca estiveram lado a lado em espetáculos e acontecimentos desportivos? Foram expulsos de organizações comuns?
Acordou agora o mundo inteligente.
O Qatar é que está a dar.
Quantos silêncios se abriram, agora, num grito.
Abaixo o Qatar! Viva o faz de conta!