A ideia de um tribunal especial para punir os responsáveis pela invasão russa ganha força, tendo a proposta europeia recebido apoio de França, esta quinta-feira. “O objetivo é obter o consenso mais amplo entre membros da comunidade internacional para este projeto”, declarou o ministério dos Negócios Estrangeiros francês, enquanto Emmanuel Macron se preparava para visitar Joe Biden. Contudo, não só há dúvidas que Vladimir Putin alguma vez se sente no banco dos réus, como analistas avisam que a sua condenação in absentia tornaria quaisquer negociações de paz quase impossíveis.
O foco deste tribunal especial não seriam crimes de guerra cometidos por tropas. Algo que recai sobre a alçado do Tribunal Penal Internacional, em Haia, que já criou uma comissão para investigar a invasão da Ucrânia, apesar de a Rússia nunca ter ratificado o TPI, à semelhança dos Estados Unidos.
Em vez disso, o objetivo é julgar o crime de agressão. Ou seja, o planeamento, preparação ou execução da agressão a outro país “por uma pessoa numa posição de efetivamente exercer controlo sobre ou direcionar ação política ou militar de um Estado”, como definem os estatutos das Nações Unidas. No caso da Rússia, referimo-nos a figuras como o próprio Putin, o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, ou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov.
Macron – que ao jantar na Casa Branca será recebido com queijos e vinho americano, uma escolha arrojada dada a excelência francesa no que toca a estes produtos – terá dificuldade em convencer Biden a alinhar na proposta deste tribunal especial, apoiada pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Até porque poderia ir contra interesses americanos.
“Washington tem visto com apreensão a ideia de um tribunal especial para agressão”, notou Victor Peskin, professor de Política e Estudos Globais. “Há preocupação que isso possa estabelecer um precedente legal que depois encurrale líderes americanos se os próprios EUA invadirem outro país soberano, como fez no Iraque em 2003”, descreveu no Conversation.
Diplomacia em risco? Contudo, nem todos os receios de Washington face à proposta de um tribunal especial são por temer ser responsabilizado pelas suas ações no futuro. Considerar a liderança russa como uma espécie de gangue de criminosos internacionais tornaria quaisquer negociações de paz praticamente impossíveis, exceto no caso do regime de Putin cair.
É uma discussão semelhante à que assistimos quanto à declaração da Rússia como Estado patrocinador do terrorismo. Algo em que a UE já alinhou, mas não os EUA. Não é uma questão do compromisso americano com a Ucrânia ser mais ou menos sólido, aliás, o esforço de países europeus como a Alemanha e até a França é muito mais questionado. O problema é que ser visto como Estado patrocinador do terrorismo pelos EUA – na sua lista está Cuba, o Irão, Síria e Coreia do Norte – implica sanções automáticas. E não é fácil perder esse estatuto.
Esse rótulo “tende a colar-se, em parte porque rescindir a designação como Estado patrocinador do terrorismo pode ser um processo politicamente carregado com requisitos rigorosos”, lia-se num relatório do International Crisis Group.
Para isso acontecer, é necessário que o Presidente americano apresente um relatório que mostre que um Estado teve uma mudança fundamental de liderança e política. Ou então que se absteve de apoiar o terrorismo internacional nos seis meses anteriores. O que parece implausível no caso da Rússia. E isso faria com que os EUA, em eventuais negociações para um cessar-fogo, nem sequer pudessem oferecer um desapertar das sanções significativo e imediato pelo menos durante seis meses. No caso do Sudão, demorou mais de três anos desde que Washington decidiu tirá-lo da lista de Estados patrocinadores de terrorismo até o conseguir.
As vantagens passariam, por exemplo, por isso permitir que vítimas da guerra processassem o Kremlin em tribunais americanos, podendo ser indemnizados pelos estragos sofridos com os fundos russos congelados no estrangeiro. O problema é que o estatuto de Estado patrocinador do terrorismo, apesar de ser “um poderoso sinal de apoio à Ucrânia”, poderia “criar sérios obstáculos” a qualquer esforço diplomático, até a algo semelhante ao acordo para permitir exportação de cereais ucranianos, apontou o Crisis Group.
No que toca à criação de um tribunal especial para o crime de agressão, o cálculo poderia ser semelhante, por muito que a Ucrânia e os seus aliados ocidentais tivessem gosto em ver Putin e o seu círculo mais próximo condenados, mesmo que in absentia. Daí que Kiev faça campanha por isso desde abril, tendo conseguido apoio apenas da Polónia e dos países bálticos – naturalmente receosos dos vizinhos russos – até Bruxelas alinhar, esta semana.
Von der Leyen afirmou na quarta-feira que o estabelecimento deste tribunal requereria apoio da ONU. Mas dirigentes europeus mostraram-se consciente de que certamente a Rússia o iria vetar no Conselho de Segurança, explicando ao Guardian que poderia bastar ter um apoio sólido na Assembleia Geral para ganhar legitimidade.