Apesar da agressão russa sujeitar a Ucrânia a um inverno crítico, ou da inflação se ter instalado na Europa – agravando o custo de vida e debilitando as economias mais frágeis, como a portuguesa –, as preocupações da maioria dos parlamentares concentraram-se na ‘purificação’ da lei da eutanásia, vulgo morte assistida, para esta ser aprovada e reenviada a Belém.
Outra prioridade inadiável ocupou, entretanto, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que apreciou os projectos de lei da autodeterminação do género do PS e do BE para aplicação nas escolas, emitindo um douto parecer no qual valida as casas de banho ‘neutras’ ou mistas, para regozijo das crianças e adolescentes, obviamente perturbadas com a separação dos sexos no exercício das suas necessidades fisiológicas.
Enquanto as prioridades dos deputados da Nação oscilam entre a eutanásia e os lavabos dos adolescentes, o primeiro-ministro deu o ‘dito por não dito’, e voltou a sentar governantes em conselho de ministros com laços familiares entre si, enquanto o Presidente da República, como é habitual, assinou ‘de cruz’ e correu a comentar o jogo seguinte de Portugal do mundial no Qatar.
Por esta amostra de prioridades, percebe-se como o poder político está preocupado com os 4,4 milhões de portugueses em risco de pobreza, e com o facto de o país estar a ser ultrapassado e arrastado para o fundo da tabela do ranking europeu do rendimento per capita.
O que vale ao Governo é que, neste segundo mandato, Marcelo Rebelo de Sousa está cada vez mais ‘comentador’ e menos Presidente.
Ao contrário de Zelensky, que antes de ser eleito Presidente na vida real, desempenhou o papel de presidente numa série de televisão, Marcelo quer ser reconhecido nas televisões como Presidente, ainda que amiúde pareça esquecer-se da função.
O cenário politico tornou-se tão kafkiano que motivou, até, o líder da bancada socialista, Eurico Brilhante Dias – um ortodoxo fiel ao ‘chefe’ –, a reconhecer que «há uma degradação do ambiente politico com impacto no Governo e na Presidência».
Tem razão. Mas faltou-lhe dizer que Governo e Presidente têm amplas culpas no cartório.
Quando se sabe que a Justiça está coxa, com importantes processos judiciais a ‘marcar passo’, travados por expedientes das defesas ou por ‘guerras intestinas’ de magistrados;
Quando se percebe que a escola pública continua a perder terreno em comparação com as privadas, minada por greves de professores, ou pelas ‘modas’ da contestação climática ou da autodeterminação do género;
Ou quando se sabe que as urgências hospitalares estão novamente caóticas, com um ministro atarantado perante demissões em série nos serviços, e doentes em espera durante longas horas;
Quando tudo isto acontece e é público, de que se ocupa o primeiro-ministro?
Descontadas as sete substituições de governantes em oito meses de maioria absoluta, António Costa, de ‘braço dado’ com Pedro Nuno Santos, anunciou o plano nacional ferroviário, sem lhe faltar a incontornável ‘alta velocidade’, na qual já se esbanjaram milhões de euros em estudos, desde o tempo de Sócrates.
Outro projeto a prazo incerto é o do novo aeroporto de Lisboa. Tal como ensinava a inesquecível série inglesa Yes Prime Minister, quando o governo não sabe o que fazer, nomeia uma comissão.
E foi o que aconteceu, com o anúncio de uma ‘comissão técnica independente’ para proceder à avaliação ambiental estratégica do futuro aeroporto de Lisboa, cujos trabalhos deverão demorar um ano, contando com o apoio (compreensivo…) do líder da oposição, Luís Montenegro.
Quase meio século depois dos primeiros estudos de localização do novo aeroporto, e com a Portela à beira de esgotada, persistem as dúvidas inexplicáveis.
Curiosamente, em fevereiro de 2017, o mesmo António Costa defendia que o Montijo seria a solução com «maior viabilidade», declarando, perentório, no ato de assinatura do memorando de entendimento com a ANA, que «o país já estudou o que tinha a estudar. Importa decidir o que se tem de decidir».
Mais tarde, em janeiro de 2020, o mesmo primeiro-ministro afirmava, feito o estudo de impacto ambiental, que «mesmo a contragosto» a ANA teria de seguir as imposições da Agência Portuguesa do Ambiente para o Montijo, «a solução que permite responder em tempo útil às necessidades existentes».
Passados cinco anos, voltámos ‘à estaca zero’, com a tal ‘comissão técnica’ convidada a escolher entre cinco opções de localização, fora outras que queira acrescentar à ‘vontade dos fregueses’…
Moral da história: o país continuará, por tempo indeterminado, com a mesma estrutura ferroviária envelhecida e tolhido em relação ao aeroporto da capital.
Somos um país adiado. Com a cumplicidade de muitos media, obedientes e amorfos, que preferem ‘não fazer ondas’…