AL-KHOR – Talvez a vida, como a Terra, seja redonda, ainda que ligeiramente achatada nos polos. Pelo menos este Campeonato da Mundo cumpriu uma volta desde que me sentei precisamente nestas bancadas no dia 20 de novembro para escrever sobre o jogo de abertura entre o Qatar e o Equador. Pois, quem ainda se lembra deles, logo dos primeiros a abandonarem a competição? Uma mancha enorme, vermelha, encheu o Al Byat. Vieram todos: marroquinos, tunisinos, sauditas, qataris e o mais que se está para saber. Deve ter vindo o Rei de Tunis, essa figura que o divino Eça punha nas suas crónicas quando precisava de uma testemunha credível mas que, por acaso, não existia. Nunca uma equipa africana atingira a meia-final de um Campeonato do Mundo, nunca uma equipa árabe atingira a meia-final de um Campeonato do Mundo. Por isso vieram juntos porque Marrocos estava aqui a representá-los a todos, concitando uma união que só este desporto universal que é o futebol consegue.
Há sempre um momento nestes jogos em que a França participa em que não consigo não me sentir, igualmente, um pouco francês: aquele momento em que as vozes se erguem anunciando a liberdade dos filhos da pátria, a chegada do dia da glória, o dia em que combatemos a tirania com o estandarte sangrento preso em nossas mãos. Ah! Feliz o povo que tem um hino assim.
Não, ninguém imaginaria no tal dia 20 de novembro em que tudo isto teve início que viríamos a ter uma meia-final entre França e Marrocos. Um frente a frente que se perde no tempo, que se construiu na diferença de ideias, na divergência da conceção de civilizações, uma disputa entre quem esteve em lados opostos dos campos de batalha mas não nos deixa esquecer os milhares de magrebinos que morreram nos campos da Flandres quando chegou a altura de perceber quem queria e quem não queria ficar do lado certo da História.
Um assobio ensurdecedor propaga-se pelo redor quando os franceses têm a bola consigo. Mas o fanatismo é mau conselheiro, atrapalha quem se deixa arrastar por ele e acaba por provocar o erro. Aos cinco minutos, tão somente aos cinco minutos, a ebulição da equipa marroquina traz consigo uma confusão defensiva generalizada, põe uns contra os outros os homens da mesma equipa e deixa Theo Hernández à vontade para fazer o 1-0. Um golo que chega cedo e abala a ferocidade dos Leões do Atlas. A França manda no Magrebe. Aqueles que vestem o vermelho de Marrakesh, a Cidade Vermelha, a Porta do Sul que deu o nome Marrocos, e usam ao peito o pentagrama verde de uma realeza antiga percebem à sua própria custa que o confronto que se desenrola sobre o relvado de Al-Khor não se reduz a uma questão de crença ou de vontade. É muito mais do que isso. Hora e meia mais tarde saberão a importância de um gesto.
A luta
Foi assente numa solidez defensiva a toda a prova – apenas um golo sofrido até ontem – que Marrocos chegou até aqui. O golpe madrugador de Theo obrigou o conjunto de Walid Regragui a reformular as ideias que pretendera impor ao jogo, o treinador avançou as suas peças para o terreno do adversário e, ao mesmo tempo, percebeu que se sujeitava a serem feridos à traição como quando Giroud chutou uma bola contra o poste direito do guarda-redes Bounou.
São estreitas as vielas das cidades de Marrocos e muitos dos seus becos sem saída. Mas aquele futebol contraído que fora aplicado na eliminação de Portugal, nos quartos de final, não servia mais agora que a realidade se impunha de forma inequívoca: era preciso encostar os franceses à retaguarda, era preciso golpeá-los continuadamente como um boxeur que atira o seu opositor contra as cordas, era preciso marcar o golo que devolvesse o equilíbrio no marcador já que, a pouco e pouco, só Marrocos é que jogava e a França, timorata como raramente a vemos, limitava-se a tentar que a bola não rondasse demasiado perto a baliza de Lloris. As oportunidades para o empate surgiram. Não foram muitas, não foram escandalosas, mas iam mantendo tudo em aberto, os adeptos árabes agarrados a uma esperança tão viva quanto justa.
Era um lugar na final de domingo que estava em jogo. E, para além dele, o sonho de um título mundial que a França já viu realizado por duas vezes, a última das quais há quatro anos, em Moscovo. Não admirava que os nervos bulissem à flor da pele e cada movimento inconclusivo, de um lado ou do outro, servisse para acrisolar os corações.
Lembram-se de Beau Geste? Aquele herói da Legião Estrangeira Francesa inventado por P.C. Wren? Michel Beau Geste, soldado e cavalheiro, garboso em batalhas no meio dos desertos do norte de África, vítima de um amor impossível pela bela Cláudia, inimitável na sua forma de respeitar os beduínos, seus inimigos. Beau Geste – Belo Gesto. Um nome e uma metáfora. Era exactamente disso que precisava aquele jogo demasiado lutado e pouco dado a efeitos de habilidade. Kylian Mbappé, Kyky como lhe chamam os ‘compagnons de route’: foi ele que, sobre o minuto oitenta (79 para ser preciso), teve aquele traço de espadachim, rodopiando sobre a sua fibra de equilíbrio, a tirar dois adversários da frente e a chutar contra a perna de um outro para que a bola sobrasse para o 2-0 de Muani. Não sei se este jovem de 23 anos nascido no 19éme arrondissement de Paris, de nome completo Kylian Sanmi Mbappé Lotin, com o sangue camaronês do pai Wilfried e argelino da mãe Fayzal, já é, hoje em dia, o melhor jogador do mundo porque ainda há por aí, pelos estádios do Qatar, um fulano baixinho chamado Messi a querer fazer valer a sua autoridade mágica de quem tem um pé esquerdo que poderia fazer-nos desconfiar de que Deus, afinal, é canhoto. Mbappé se não é o melhor do mundo, virá a sê-lo. Para já, tem encontro marcado com Lionel um pouco mais a sul, em Lusail, no próximo dia 18, para satisfação de todos aqueles que continuam a gostar do futebol como espectáculo único de movimentos arrojados, de imaginação infinita, desporto que muitos se convenceram de que se joga com os pés mas que, na realidade, se joga com as circunvoluções do cérebro e pelo contacto entre as terminações nervosas e outros neurónios, células musculares ou glandulares e a que chamamos sinapses. São elas as responsáveis pelos belos gestos. E por aquele gesto belíssimo de Kyky Beau Geste que decidiu um jogo que ficará para a história graças à valentia e à força de uma seleção de Marrocos que carregou com toda a Arábia aos ombros e merece o reconhecimento do que viveram este seu momento único. “Salaam!”