DOHA – Estávamos no final de abril de 1928. Um pouco por toda a Europa as seleções aceleravam a sua preparação para os Jogos Olímpicos de Amesterdão. Instalada em Lisboa, a equipa da Argentina treinava-se diariamente no campo do Sporting e a sua aura de grande favorita à medalha de ouro, bem como a recente vitória sobre os míticos campeões uruguaios por 3-2, em Lima, no Peru, para o Campeonato Sul-Americano, suscitavam a curiosidade dos adeptos portugueses que acorriam a ver as habilidades dos argentinos em romarias numerosas. Quatro anos antes, em Paris, o Uruguai fascinara os adeptos do futebol europeu com um percurso notável até à medalha de ouro – Jugoslávia (7-0), Estados Unidos (3-0), França (5-1), Holanda (2-1), Suíça, na final (3-0). Nunca se tinha visto um futebol assim. A magia técnica e o fascínio do drible de jogadores como Héctor Scarone, El Mago ou o Gardel del Fútbol, que nos treinos entretinha o público fazendo tombar garrafas de água à distância com pontapés certeiros, de Pedro Cea, de Arispe, o Talhante, de José Nasazzi, o Pedreiro, de Perrucho Petrone, o Vendedor de Legumes, e de José Leandro Andrade, a Maravilha Negra, ou o Limpador de Fatos, que se deixou ficar por Paris, tornando-se durante meses um boémio frequentador de cabarés, um príncipe de Pigalle de sapatos de verniz e casacos de pele, frequentador habitual das colunas sociais, espalhou-se como fogo em campo de palha seca. E agora, em Amesterdão, havia quem fosse capaz de fazer frente aos uruguaios – os argentinos!
O escritor Henry de Montherlant, que fora também desportista e especialista dos 100 metros, escreveu quando os viu jogar: “Uma revelação! É este o verdadeiro futebol! Aquele que nós conhecíamos, aquele que nós jogávamos. Comparado com isto, tudo o resto não passa de um divertimento para estudantes”.
Ombro a ombro Uruguai e Argentina cavalgaram ombro a ombro até à final desse torneio olímpico, embasbacando um público que deixava correr baba pelos cantos da boca ao ver as habilidades técnicas dos sul-americanos, os seus ziguezagues estonteantes, as tabelinhas perfeitas, os passes infalíveis, a maneira como faziam subir a bola por sobre as cabeça dos adversários e recolhê-la nas suas costas. Aprenderam a soletrar outros nomes: Fernando Peternoster, o central implacável, Luis Monti, o médio de ataque do grande San Lorenzo de Almagro, o goleador Raimundo (Mumo) Orsi, que se naturalizaria italiano e seria campeão do mundo em 1934, Domingo Tarrascone, El Patadura, que foi cantado num tango de Gardel, Pedro Ochoa, o Ochoita… Ah! Felizes os lisboetas que puderam vê-los! Mesmo que só em treinos. E decoraram os seus nomes…
Na Holanda, a Argentina entrou na prova em ritmo de passeio goleando os Estados Unidos por 11-2. Foi delirante. Só à sua conta Tarrascone marcou quatro, Roberto Eugenio, El Cherro, natural do Barrio de las Barracas, em Buenos Aires, marcou três. Mais modesto, o Uruguai ficou-se por 2-0 à Holanda. Havia nos argentinos uma espécie de raiva. Como se tivessem algo a provar, como se fosse absolutamente necessário sair da Europa com a mesma fama do que os seus vizinhos do lado de lá do Rio de La Plata. E quem pagava por essa ansiedade eram os adversários que lhes surgiam pela frente. Nos quartos-de-final, a vítima foi a Bélgica: 6-3! Com a facilidade como bebia um copo de chá-mate, Tarrascone voltou a marcar quatro golos. Era um homem enfurecido! Tenham medo! Tenham muito medo! Nascido no dia 20 de dezembro de 1903, Domingo Alberto, estrela maior do Boca Juniors, não deixaria a sua fama cair no poço do olvido, queria e viria a ser o melhor marcador dessa edição do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos, apenas a segunda onde surgiu em todo o seu esplendor a feitiçaria pedestre dos sul-americanos. A Europa espantava-se e tinha razão para isso. Tanta e tanta gente tornava-se testemunha de algo absolutamente inédito. E quanta da paixão e admiração que o jogo de argentinos e uruguaios continuam a suscitar entre nós vem da lenda que se criou em seu redor em 1924 e 1928, os anos que precederam o aparecimento dos Campeonatos do Mundo e nos quais o torneio olímpico era considerado como o verdadeiro Mundial.
Enquanto o Uruguai se apurava para as meias-finais à custa da Alemanha (4-1), marcando confronto com a Itália num frente-a-frente rodeado de grandíssima expectativa, a Argentina conquistava lugar na final do Estádio Olímpico desfazendo o Egipto (que eliminara Portugal) com o seu ritmo assassino: 6-0. Impressionante! Aterrador! 23 golos em três jogos!!!??? Com mais três de Tarrascone!
A final tornou-se inevitável. Os uruguaios deixaram os italianos para trás num jogo duro (3-2) e iriam defender o seu título contra os seus inimigos de estimação. No dia 10 de junho, 120 minutos não chegaram para se encontrar um vencedor: Petrone fez 1-0 para o Uruguai (23m), mas Ferreira empatou aos 50m. Três dias depois, a Celeste Olímpica, como passou a ser conhecida, repetiu a medalha de ouro conquistada em Paris, com golos de Figueiroa (17m) e Scarone (73m) a superarem o de Monti (28m). Trinta mil pessoas viveram a excitação de um confronto superlativo. Mais de 250 mil pedidos de bilhetes chegaram ao Comité Olímpico vindos de todos os países da Europa. A Argentina fora mais espetacular, mas o Uruguai tirou proveito da sua experiência. E os nomes dos jogadores argentinos tinham entrado pela porta grande dos apaixonados por um jogo que nunca fora visto no Velho Continente.