Por Sara Porto e Maria Moreira Rato
É a época em que os subsídios caem na conta bancária e trazem alguma folga às carteiras. A época em que as ruas, as casas e o comércio se enfeitam de luzinhas que imitam as estrelas do firmamento. Em que a música-ambiente dos centros comerciais e grandes superfícies repete velhas melodias nossas conhecidas – às vezes demasiado conhecidas até. A época em que as famílias tiram dos caixotes os pinheiros desmontáveis e os decoram com esmero. A época das festas e dos repastos bem regados.
Há quem adore a quadra natalícia; e quem simplesmente não tenha qualquer paciência para ela. Os dias mais curtos do ano convidam à depressão e a alegria dos outros pode tornar-se apenas irritante. Com o seu individualismo feroz e aguçado espírito de contradição, muitos escritores manifestaram sem rodeios a sua aversão pelo Natal e pelos sentimentos que desperta.
“Hoje é dia de ser bom”, ironizava António Gedeão no poema ‘Dia de Natal’: “Jesus /o doce Jesus / o mesmo que nasceu na manjedoura / veio pôr no sapatinho /do Pedrinho/ uma metralhadora”.
Fernando Pessoa também não via muitas razões para celebrar. Enfermiço, queixava-se do mau tempo: “Chove/ É dia de Natal/ Lá para o Norte é melhor/Há a neve que faz mal/ E o frio que ainda é pior// Pois apesar de ser esse/ O Natal da convenção/ Quando o corpo me arrefece/Tenho o frio e Natal não”.
Mas não é apenas entre os poetas que o Natal estimula o sentido crítico. São muitos os que não só não partilham do espírito natalício como têm mesmo uma espécie de alergia por esta época.
Não faz árvore de Natal há dois anos Aos 58 anos, Manuela Silva confessa que, para ela, o Natal tem um sabor agridoce. Apesar de ser uma das vendedoras mais conhecidas e adoradas da sua cidade, Vila Nova de Santo André, os enfeites de Natal que vende transportam-na sempre até à sua infância marcada pela violência doméstica entre os pais, que se estendia também às filhas. Em pequena chegava a ser presa a chinelos com arames.
Apesar de sempre ter passado dificuldades, nessa altura do ano a família juntava-se em Lisboa e Manuela e a sua irmã mais nova conseguiam ter um vislumbre de “normalidade”. Depois de uma noite de terror, as três fugiram de casa e mantiveram-se unidas contra todas as adversidades, até à morte da progenitora, que resultou na separação das duas irmãs, ainda crianças. Depois disso, a pequena magia que existia desapareceu.
Aos 21 anos teve o seu primeiro filho, e 15 anos depois nasceu Mariana, a sua filha mais nova. Mesmo com a aversão às festas natalícias, Manuela tentou sempre viver os festejos com alguma naturalidade, com a montagem da árvore de Natal. Todos os anos, conseguia dar pelo menos um pijama aos dois filhos. Mas agora, sozinha, já não tem de fazer esse esforço. Não faz a árvore de Natal há dois anos e assume que a a “hipocrisia” e falta de empatia entre as pessoas causam-lhe asco. Ainda assim, na noite da consoada terá a companhia da filha para jantar.
“Não acredito que Jesus Cristo tenha existido” João Martinho, de 44 anos, não tem aversão ao Natal, no sentido em que possui “alguma tolerância” em relação às crenças das outras pessoas. Porém, custa-lhe a suportar ser “quase obrigado” a celebrar uma data baseada “numa fantasia religiosa que nos impingem desde pequeninos”: “Se sou ateu, sou apóstata (consegui que o meu batismo fosse anulado), se não acredito que tenha existido Jesus Cristo (não há quem consiga provar factualmente), não sei por que me hei-de submeter sempre a toda esta pressão, esta obrigação, de celebrar o Natal e as tradições a ele associadas”, explica ao i.
“escusam de festejar comigo” “Não havia ninguém que gostasse mais de festejar o Natal do que eu, mas achei que, ao longo da minha vida, fiz tudo e mais alguma coisa. Muitas das vezes, não tinha dinheiro e guardava tudo para fazer as mesas mais bonitas. Afinal, estava a obrigar as pessoas a gostar do meu Natal?”, questiona Lourdes Monteiro. “O último Natal que festejei foi o do ano em que a minha neta nasceu, em 1998: não tinha o direito de obrigar ninguém a fazer-me um favor. As pessoas estavam com cara de enjoadas e, por isso, cheguei a uma certa altura que deixei de festejar o meu Natal. Por isso, festejam o deles”, sublinha.
“Por outro lado, servem-se do Natal para ver quem dá as melhores prendas: é um consumismo louco. Tornou-se uma hipocrisia tão grande que as pessoas nem fazem ideia. As pessoas são cada vez mais hipócritas. Eu caí em mim e disse: ‘Este é o meu Natal, têm de ter o delas’. Escusam de festejar comigo, de vir cá com prendas, de me convidar para ir a casa deles. Não me custa não festejar porque estou com as minhas cadelas e sou feliz com elas”, explica.
Apesar de tudo, tem um sonho: vestir-se de Pai Natal e alegrar a quadra natalícia de crianças, oferecendo-lhes brinquedos.
“Antes de morrer, adoraria de fazer isso”, confessa. “Estou tão farta de ouvir falar do Natal… É um apelo tão grande ao consumo… O Natal não é isso! Naquela casa grande que eu tinha… Abria as mesas, punha toalhas bonitas, loiça vistosa, as minhas coisinha, as passas, os figos, os pratos e… acabou tudo”, lamenta, antes de falar do pior Natal que viveu. “A família da parte da minha mãe era muito grande e no ano em que o meu filho nasceu fui viver para a minha primeira casa e só havia pobreza, miséria moral e merda a pontapé. Tinha vários quartos alugados, mas não havia luz elétrica”, lastima. O bebé foi batizado nesse mesmo dia pelas 21h.
“Toda a gente foi ver televisão para casa dos vizinhos, fiquei sozinha com o meu bebé, ficaram lá em casa duas outras crianças filhas de dois madeirenses e lembro-me de que comemos juntos. E a família da minha mãe estava toda junta em Carcavelos. Esse foi o meu primeiro Natal de casada, mãe, e o pior”, constata. “Eu fui sempre uma mulher sozinha e, por isso, não gosto de companhia. Posso ir a uma festa, mas tenho de voltar para casa e ficar no meu ambiente”, conclui.