DOHA – O Rio de La Plata desaguou no Qatar, este país sem rios. A Argentina voltou a ser campeã do mundo 36 anos depois, e provou, finalmente, que era capaz de fazê-lo sem Diego Armando Maradona. Pela madrugada de Buenos Aires, soaram os tangos e as milongas. E talvez se tenha ouvido igualmente a voz de Manu Chao, esse cantor de todas as línguas: «Si yo fuera Maradona/Viviría como él/Si yo fuera Maradona/Frente a cualquier portería/Si yo fuera Maradona/Nunca m’equivocaría/Si yo fuera Maradona/P.erdido en cualquier lugar…» Diego Armando parece continuar perdido em qualquer lugar, mesmo agora que está morto, mas era ele que os hinchas seguiam, seguros da sua força, convictos de que nunca falharia frente a uma baliza.
A Argentina é o país dos mitos O país dos encantamento e do fascínio por personagens dramáticas. Gardel, o grande cantor do tango, aos 44 anos, num acidente de aviação; Evita, a Senhora dos Descamisados, foi levada por um cancro aos 33; Che Guevara, fuzilado na Bolívia com 39 anos; Maradona acabou para o futebol no Mundial de 1994, abatido à queima roupa por um controlo anti-doping que acusou efedrina – tinha 30 anos. Nesse dia 25 de junho, em Massachussets, Eduardo Galeano, o escritor que sabe tudo sobre as veias abertas da América Latina, rabiscou no seu bloco notas: «Jogou, ganhou; mijou, perdeu».
E porque se continua a falar de Maradona após a final memorável de Lusail, certamente um das mais emocionantes da história de todos os campeonatos do mundo? Ou de Evita, cujo cadáver embalsamado esteve anos exposto na sala de jantar do marido, Juán Manuel Perón, durante o seu exílio em Madrid? E de Gardel, que cantava com a sua voz de zorzo (tordo): «Mi Buenos Aires querido/Cuando yo te vuelva a ver/No habrá más penas ni olvido…»? Porque se os argentinos vivem fascinados pela atracção dos mitos, vivem também angustiados pela forma dramática como os perdem. Há naquela emoção genuína que põem em todas as coisas, um medo que tantas vezes lhe tolhem os gestos e os raciocínios.
90 mil pessoas assistiram, durante 120 minutos mais grandes penalidades, à glória da Argentina, à sua queda no abismo, ao seu ressuscitar que merecia ter sido contado pela prosa labiríntica de José Luís Borges. «En caravana los recuerdos pasan/Como una estela dulce de emoción/Quiero que sepas que al evocarte/Se van las penas del corazón», teimava Gardel em puxar pelo coração gigante desse país enorme que continua a viver, crise após crise, em sofrimento, como em sofrimento viveu as ditaduras militares que fizeram desaparecer centenas e dentenas de rapazes, filhos das mulheres que continuam a juntar-se na Plaza de Mayo accreditando no seu regresso impossível.
O murmúrio de Diego
O Argentina-França do Estádio Icónico de Lusail foi um jogo com dois defeitos. Os mesmos defeitos que Cavaleiro de Oliveira encontrou nos Lusídas: demasiado grandes para se recordarem de cor; demasiado curtos para serem infinitos. Quem lá esteve nunca esquecerá o ambiente efusivo, que tanto se ficou a dever à paixão que os imigrantes do Qatar sentem por Lionel Messi, o novo mito argentino, o homem baixinho que tinha tudo menos um título de campeão do mundo. A ninguém podem restar dúvidas que a voz distante de Diego Armando Maradona conduziu Messi ao estatuto não de Deus, mas de um Deus íntimo, aqueleDuende que José Maria Lorca deu a conhecer ao mundo num discurso feito em Buenos Aires através dos sons: «Esses sons negros são o mistério, as raízes que penetram no limo que todos conhecemos, que todos ignoramos, mas de onde nos chega o que é substancial em arte. Sons negros, disse o homem popular da Espanha, que coincidiu com Goethe. Goethe define o duende ao falar de Paganini, dizendo: ‘Poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica’». Estive lá e vi. Vi seis dos sete jogos da Argentina, e vi uma equipa que foi crescendo em redor daqueles artistas-operários que lutaram sempre, até ao fim da sua resistência, contra a terrível mosca do aborrecimento, crescendo ao ponto de, ao fim de vinte minutos do jogo derradeiro, toda gente dizer, em segredo, ao ouvido do parceiro do lado, a realidade chocante: «A França morreu!».
Era autêntica, essa morte. A morte de uma seleção que Didier Deschamps tem vindo a construir à base de contentores de músculos aliados à sensibilidade dos pés, um mostrengo assustador para qualquer adversário, mesmo quando privado de alguns dos seus jogadores mais significativos. Essa França-mais-africana-de-todas-as-Áfricas, não se deixou morrer sem luta. Teve a arte de ressuscitar e um rapazinho dentro do furacão que é ele próprio um furacão, Kyky-Beau-Geste, ou apenas Mbappé, com a sua elegância devastadora da personagem de P. C. Wren que combatia pela Legião Estrangeira os beduínos que vinham de Tânger até aqui.
Desde o início da competição que muitos sonharam com uma final entre Messi e Mbappé, neste momento os dois melhores jogadores do universo. Na noite do último domingo, em Lusail, no norte do Qatar, Kyky fez três golos – algo que só Hurst tinha conseguido numa final, em 1966 – e foi o melhor, mesmo perdendo; Messi marou só dois, e não tendo sido tão espetacular como o francês, ganhou porque a taça foi dele.
Maradona disse…
A euforia argentina dá para tudo no momento em que vivemos. «Si yo fuera Maradona/Frente a cualquier porquería/nunca me equivocaría..», poderia cantar Manu Chao à vontade. Pouco importam agora as porcarias, aquela convicção de que a FIFA perseguia Diego Armando e, por arrasto, toda a Argentina, da foz do Rio da Prata a Rosário, província de Santa Fé, a cidade onde nasceu Ernesto Guevara de La Serna, o Che, Messi e Di Maria, os homens que marcaram os golos blanquíazules da final. Maradona esteve em Lusail, mesmo não estando. Antes de o encontro ter começado, abeirou-se de Messi e transmitiu-lhe o recado divino do Duende: «Vai e leva contigo o meu pé esquerdo para que assim fiques duplamente canhoto e possas fazer de conta que és Deus, como eu, aqui no céu à direita do pai». E Messi foi e fez dois golos, um com cada um dos seus dois pés esquerdo, tal como dizia a profecia. E, por isso ter acontecido, exige agora lugar entre os melhores de todos os melhores, com autoridade para isso, naturalmente, mas obrigado a respeitar a definição subjetiva de cada um. Eu, que vi Messi fazer coisas superlativas, sei, daquele saber que vem das seivas, que nunca Messi será Maradona porque Maradona metia medo aos adversários, ao público que o assobiava apavorado, metia medo ao próprio Deus quando as pessoas começaram a desconfiar que algo não estava bem na história que nos chega há mais de dois mil anos porque nunca ninguém nos avisou que Deus era canhoto.
Mas, vendo bem, que importa que Messi, por mais que deseja ser visto como Maradona seja sempre um Diego Aramando sem os dois golos contra a Inglaterra, porque nunca teria aquele descaramento divino de que falava o Eça de meter um com a mão e porque não está no seu feitio ter o ódio em cima do qual Maradona marcou o segundo? Assumiu Marado na cancha. Sim, Maradona esteve na final do Mundial do Qatar, só um cego não o veria. E Evita. E o Che. Todo um país de mitos. E Gardel: «Milonga que hizo tu ausencia/Milonga de evocación/Milonga para que nunca/La canten en tu balcon/Pa’ que vuelvas con la noche/Y te vayas con el sol…» Quando o sol nasceu na manhã seguinte, Diego Armando já tinha partido de regresso ao céu sem fundo. A milonga da sua ausência foi cantada até à exaustão. Os campeões do mundo percorreram a Avenida de Mayo, cruzaram a 9 de julho, e entraram na Casa Rosada onde Alberto Fernández lhes fez uma vénia. Afinal é apenas o presidente e os que recebeu são príncipes. Os príncipes dourados do Rio da Prata.