Por João Sena
A indústria automóvel mundial continua sob tensão devido à conjugação de vários fatores em diferentes momentos. Primeiro, foi o confinamento nas fábricas chinesas e de Taiwan a provocar a falta de semicondutores – os dois países são responsáveis por mais de 70% da produção mundial; depois, veio uma inflação galopante que fez disparar o preço das matérias-primas; por fim, foi a guerra na Ucrânia a provocar uma crise energética, a fechar fábricas onde se produziam cablagens e a suspender o fornecimento de gás néon – elemento fundamental para o fabrico de ‘chips’ – à China, Taiwan e Coreia do Sul, entre outros países.
Esta ‘tempestade perfeita’ teve repercussões negativas no setor automóvel. Com 2022 a chegar ao fim, a produção automóvel na Europa vai ter uma quebra superior a 20%, a América do Norte regista uma baixa de 3% e de 2,5% na Ásia. Segundo o Automotive News, a redução da produção à escala mundial poderá significar cinco milhões de veículos a menos no mercado em dois anos!
Produção em baixa. Os semicondutores são circuitos integrados que permitem aos dispositivos eletrónicos que utilizamos no nosso dia a dia (telemóveis, computadores, micro-ondas, elevadores ou automóveis) processar, armazenar e transmitir dados. Nos automóveis, estas minúsculas peças são fundamentais para fazer funcionar, por exemplo, a direção assistida, a gestão do motor, o ESP e o sistema de travagem, entre muitos outros. Sem estes componentes, as marcas não conseguem finalizar a produção e colocar no mercado automóveis novos. Tudo isto acontece numa altura em que os construtores investiram massivamente na eletrónica e os carros são cada vez mais digitais. Como exemplo, o Mercedes Classe S necessita de 2444 semicondutores para que todos os sistemas funcionem, ao passo que o BMW X1 utiliza 1254 e o Dacia Duster precisa apenas de 180 semicondutores.
Por falta de semicondutores e cablagens, os grandes construtores foram obrigados a reduzir ou a parar a produção nas fábricas na Europa, como aconteceu com a Renault, Toyota, Volkswagen e Grupo Stellantis, responsável pela produção das marcas Peugeot-Citroën, DS, Opel e Fiat Chrysler. A Autoeuropa foi forçada a parar a produção na fábrica de Palmela o ano passado, mas a situação melhorou e, em 2022, espera produzir 230 mil viaturas. A crise dos ‘chips’ pode custar aos grandes construtores 100 mil unidades/ano, segundo as estimativas de responsáveis do setor. Ainda segundo esses especialistas, a falta de semicondutores pode durar até final do próximo ano, condicionando grandemente a produção de veículos, sobretudo no início de 2023.
A Peugeot vai terminar o ano como a marca mais vendida em Portugal, mas passou por dificldades como nos explicou Jorge Magalhães, diretor de Comunicação e Assuntos Institucionais: “Fomos naturalmente afetados por uma crise que afeta todo o setor e veio sobrepor-se a um contexto de crise sanitária. Houve limitações de produção, mas menores do que em 2021”. A Peugeot faz parte do gigantesco grupo Stellantis e teve de readaptar a sua estratégia. “Desde o início destas crises que o grupo conduz a atividade de produção diariamente, fábrica a fábrica, adaptando a atividade industrial às tendências do mercado automóvel e tendo em conta as diferentes situações que enfrentamos, nomeadamente o fornecimento de peças e os confinamentos. Temos feito tudo para satisfazer as necessidades dos clientes, e as nossas equipas estiveram sempre mobilizadas para entregar as viaturas nos melhores prazos possíveis”, sublinhou Jorge Magalhães.
As expetativas para 2023 são positivas, embora haja sinais preocupantes, como referiu o responsável da marca francesa: “A situação internacional continua muito instável a vários níveis, pelo que temos de encarar 2023 com prudência. Apesar disso, é expetável um crescimento do mercado derivado do facto de terem existido constrangimentos de produção em 2022 que não permitiram satisfazer a procura e que originaram um aumento da carteira de clientes por satisfazer em 2023”. Por isso, manter o primeiro lugar nas vendas de ligeiros de passageiros é o objetivo, segundo Jorge Magalhães. “Para a Peugeot será novamente um ano de grande investimento. Em 2022, tivemos a liderança do mercado em quase todos os segmentos, incluindo SUV e veículos comerciais ligeiros. Em 2023, queremos consolidar estes resultados e, para isso, vamos ter uma das maiores ofensivas de produto de sempre da Peugeot», disse, explicando como: “Vamos fazer uma importante renovação da gama em termos de design, adaptando os modelos à nova imagem da marca, e reforçar a evolução tecnológica, com o lançamento de novos motores elétricos”.
Os chamados construtores generalistas foram grandemente afetados, como reconheceu Hugo Barbosa, diretor de comunicação da Renault Portugal, a segunda marca mais vendida no mercado nacional. “Houve uma combinação de fatores que contribuíram para a situação que estamos a viver. Um deles foi a paragem das fábricas chinesas que produzem ‘chips’, a isso juntou-se o aumento exponencial da compra de computadores e de outros equipamentos que dependem de semicondutores e microprocessadores, já que grande parte da população mundial ficou em teletrabalho e em telescola. A opção das próprias marcas em reduzir as encomendas de semicondutores quando a atividade estava parada devido à covid 19 também contribui para esta situação. Depois, quando a indústria automóvel quis voltar a um ritmo normal já não havia capacidade de produção para abastecer as marcas automóvel”, justificou o responsável da Renault.
A incapacidade de manter a produção normal levou as marcas a readaptar estratégias e a limitar a oferta. “Chegámos a produzir automóveis semiacabados, enviá-los para o país onde iriam ser comercializados e quando houvesse os restantes componentes uma equipa terminava a montagem antes dos carros irem para os concessionários. Era mais caro parar a produção do que produzir carros semiacabados”, referiu Hugo Barbosa.
Com tudo isto, a espera, que antes era de quatro a seis semanas, agora pode ultrapassar os seis meses.
A guerra na Ucrânia parou o fornecimento de componentes e causou um importante estrago nas contas da Renault, que perdeu 2,2 mil milhões de euros com a venda da AvtoVAZ, que produz os modelos Lada. “Com o embargo à Rússia tivemos de nos desfazer da empresa e vendemos tudo ao Instituto de Ciência russo por um rublo. Era um negócio que valia milhões de euros e representava 17% do negócio global da marca”, explicou. As perspetivas da Renault para 2023 são moderadas: “A situação deve estar normalizada ao longo do ano, mas a instabilidade que vivemos nos dois últimos anos torna arriscado fazer previsões. Há indicadores de que vai haver cortes de energia em alguns países da Europa, e isso pode obrigar as fábricas a parar. Depois, há uma situação que pode ser preocupante que é Taiwan. Quando a China tem um discurso hostil sobre esse território fica tudo a tremer pois Taiwan é responsável por uma grande parte da produção de semicondutores para todo o mundo”, referiu. A falta de produto associado ao aumento do preço das matérias-primas e dos custos de logística vai refletir-se, inevitavelmente, no agravamento do preço final dos automóveis novos quando o mercado regularizar. Esse facto pode acelerar a transição para outro tipo de abordagem do cliente, já que “as pessoas vão ter mais dificuldade em comprar automóvel novo e poderão optar por um serviço de mobilidade”, perspetivou Hugo Barbosa.
Clientes desesperam. Também as marcas premium sofreram com a crise dos ‘chips’, como nos explicou João Trincheiras, diretor de comunicação da BMW Group. “A procura por automóveis novos tem sido imensa, devido às limitações que existem na produção. As marcas que ainda estão a vender carros são aquelas que tinham modelos em stock. Na BMW, temos uma carteira enorme de clientes e não temos veículos para entrega. A maioria dos pedidos é de carros elétricos. O mercado premium baseia-se muito nas empresas que procuram este tipo de veículo por causa dos benefícios fiscais”, afimou, exeplificando: “Um cliente do novo iX1 só terá o carro dentro de um ano. Saindo dos elétricos a coisa melhora um pouco, mas será sempre uma espera de alguns meses”. A Mini, que faz parte do Grupo BMW, foi também atingida pela crise: “As cablagens vêm da Ucrânia e quando rebentou a guerra o fornecimento parou e a produção de carros também”. A falta de semicondutores atinge também as motos BMW. “Não há faróis de ‘led’ no mercado e estamos a vender motos com faróis de halogéneo. Quando recebermos os ‘leds’ chamamos os clientes para fazer a troca”, disse João Trincheiras. Esta situação poderá, prolongar-se por mais algum tempo como nos disse o responsável da BMW. “Pelas conversas que tenho tido com quem está no terreno, penso que, até final de 2023, vamos continuar a ter mais clientes do que carros para entrega. Estávamos habituados a gerir o excesso de produto, agora estamos a gerir a escassez de produto. Dizer que não a um cliente é extremamente desagradável”, reconheceu.
A situação que se vive no setor automóvel levou a um posicionamento diferente: “A marca fez uma mudança de estratégia. Em vez de apostar no volume de vendas focou-se na rentabilidade, trabalhando com margens mais pequenas, mas é preciso que haja carros”, concluiu João Trincheiras.
A expetativa dos construtores é que o fornecimento de componentes esteja regularizado no próximo ano, mesmo assim, a produção global de automóveis deverá ser 20% inferior à verificada em 2019, ano em que o setor automóvel mundial registou um recorde de vendas, com 92 milhões de veículos produzidos.
Para compensar a dependência dos fornecedores asiáticos, a Europa vai lançar uma ambiciosa campanha de produção de semicondutores. A Bosch está na primeira linha e vai investir mais de 250 milhões de euros na expansão da sua fábrica, na Alemanha, até 2025. Nos Estados Unidos, a Micron planeia construir uma fábrica de ‘chips’, na zona de Nova Iorque, e investir até 100 mil milhões de euros nessa unidade nos próximos 20 anos.
Não é só a falta de semicondutores e de cablagens que afeta a produção automóvel na Europa. A falta de vidro para fabricar janelas e para-brisas dos automóveis condiciona a produção. A indústria do vidro necessita de grandes quantidades de gás para a fundição dos ingredientes que o compõem (sílica, óxido de cálcio e óxido de sódio), e esse gás vem da Rússia com o que isso representa.
Depois de tudo isto passar, a situação continuará a não ser a mais agradável para o cliente, uma vez que o aumento das matérias-primas e dos custos de logística deverão refletir-se no preço final dos automóveis novos.
Mercado nacional aguenta. De janeiro a novembro de 2022, foram matriculados 166.935 veículos novos, o que representa um incremento de 1,8% relativamente ao mesmo período do ano anterior – ou seja, se não houvesse limitação de carros o mercado de ligeiros de passageiros registava um importante crescimento. Em comparação com o mesmo período do ano de 2019, o último ano de atividade normal, observou-se uma diminuição de 31.9%. Nos primeiros 11 meses do ano, a Peugeot foi a marca mais vendida, com 18.621 unidades, mesmo assim perdeu 10,1% de mercado, surgindo a Renault na segunda posição, com 13.732 unidades vendidas, menos 26,6% relativamente ao ano transato.
Ir a um stand comprar um automóvel novo tornou-se uma experiência frustrante devido à falta generalizada de automóveis para entrega, e quem fica a ganhar é o mercado dos seminovos e usados. Neste momento, há concessionários a vender carros de serviço a preço de carros novos e, nalguns casos, até mais caros, devido ao aumento da procura e à escassez de oferta. No mercado dos usados, o aumento da procura fez os preços subirem entre 20% a 25% ao longo do ano.
Por outro lado, a falta de veículos novos para entrega imediata tem levado ao aumento da importação de automóveis usados. Em 2021, por cada dois carros novos vendidos em Portugal, houve um veículo em segunda mão vindo estrangeiro – principalmente da França, Alemanha, Bélgica e Países Baixos – que entrou no mercado dos ligeiros de passageiros.
Para Hélder Pedro, secretário-geral da Associação de Comércio Automóvel de Portugal (ACAP), “esta crise teve um efeito grave no mercado nacional, que perdeu mais de 30% face a 2019, e na Europa a quebra é superior 20%”. “Há uma perda importante de volume de mercado, o que significa que é o único setor de atividade que não recuperou no período pós-pandemia”, disse Hélder Pedro, salientando o facto de que “a Europa tem uma dificuldade em termos de soberania tecnológica face à Ásia no que diz respeito a componentes e semicondutores. Por esse motivo, Bruxelas já avançou com uma estratégia para aumentar a independência em relação a esses países no fornecimento de semicondutores, só que a instalação de uma fábrica demora tempo”. O responsável da ACAP lembrou ainda que “a falha de produção não se deve apenas à falta de componentes. A guerra na Ucrânia teve implicações pois grande parte das cablagens são produzidas nesse país, e com a invasão não havia hipóteses de as receber. Por outro lado, há matérias-primas russas indispensáveis para a indústria automóvel e que com o embargo deixaram de poder ser utilizadas. Toda a cadeia de abastecimento teve um encarecimento enorme e isso também condicionou o mercado europeu”.
Hélder Pedro considera que o fornecimento de semicondutores poderá estar normalizado no próximo ano “a nossa expetativa é que tudo esteja regularizado ao longo de 2023 e que o mercado europeu volte ao normal”. Em relação a Portugal, referiu que: “O mercado teve uma quebra superior a 30% relativamente a 2019, o que representa menos de 70 mil carros vendidos”. Com a cadeia de produção reposta, o próximo ano poderá ser de recuperação, mas há outros fatores que podem condicionar a atividade, como disse o responsável da ACAP “há indicadores que não são favoráveis. O aumento da inflação e a subida das taxas de juro podem provocar um abrandamento na economia nacional e uma estagnação do mercado automóvel”.
Ainda há bons negócios. Os concessionários têm aproveitado esta ‘tempestade perfeita’ para escoar os stocks e fazer bons negócios. Para Eurico Amaral, diretor-geral do Polo Santogal-Loures, “a quebra na produção melhorou o negócio das concessões”, e explicou porquê: “Deixou de haver a pressão dos stocks. Durante todo o ano, a procura foi maior do que a oferta, em consequência disso as margens de lucro aumentaram substancialmente. Todos os meses os concessionários recebem carros, têm é muito menos do que esperavam, por isso em termos de negócio o ano de 2022 foi francamente bom”, e deu um exemplo: “No verão, as empresas de rent a car compravam carros a qualquer preço, nem pediam desconto”. No mercado dos usados aconteceu o mesmo, mas, “como a oferta é menor, passaram a valer muito mais. Contudo, a partir de setembro a situação começou a inverter-se e, neste momento, a procura dos particulares é menor”, frisou.
Para Eurico Amaral, as perspetivas para 2023 são animadoras, sobretudo na primeira metado do ano. Há fatores que podem contribuir para isso. “As fábricas não vão conseguir produzir muito mais do que produziram este ano e a procura vai abrandar devido à inflação e à subida das taxas de juro. Como os concessionários têm uma grande carteira de clientes há uma parte do ano que as vendas estão asseguradas: “Penso que no segundo semestre a procura dos particulares vai estabilizar e poderá a haver stocks”.