Nos bastidores, enquanto as luzes da ribalta recaem sobre Volodymyr Zelensky, as chefias militares organizam o esforço de guerra, tratam da logística, asseguram que os ucranianos se mantêm um passo à frente dos invasores. E se os russos agora estão na defensiva, algo impensável em fevereiro, foi muito graças a Valerii Zaluzhnyi e Oleksandr Syrskyi, os generais que têm sido o cérebro das Forças Armadas da Ucrânia, dando bom uso ao fluxo de armamento da NATO que os discursos inflamados de Zelensky têm ajudado a chegar às tropas. Estes comandantes, pouco conhecidos fora da Ucrânia, tornaram-se autênticos ícones para os seus concidadãos desde que travaram a invasão. Havendo rumores que a popularidade do comandante-em-chefe das Forças Armadas, Zaluzhnyi, despertou alguma inveja entre o círculo mais próximo do Presidente, assim como tensões com o número dois dos militares, Syrskyi, o comandante do exército.
A experiência de Zelensky pode tê-lo preparado para dirigir a nações de forma carismática, perante as câmaras. Mas ucraniano teve sorte por poder contar com chefes militares tão veteranos. Sendo que um deles, Zaluzhnyi, se mostra particularmente desprendido das velhas doutrinas bélicas soviéticas, fazendo parte da primeira geração de oficiais treinados após da queda da URSS. Já Syrskyi, traz a vantagem de conhecer bem o inimigo, tendo até nascido na Rússia e estudado na Escola Superior de Comando de Armas Combinadas de Moscovo, uma prestigiosa escola militar, descrita como uma espécie de West Point soviética.
Quando Zelensky foi visitar Joe Biden a Washington, antes do natal, a lista de prendas que levava foi escrita por estes dois homens, que receiam que o regime de Vladimir Putin aproveite o inverno para construir um novo exército, atirando-o contra a Ucrânia algures entre o final de janeiro e o início de março, seja a partir do sul, do leste ou da fronteira da Bielorrússia, a norte, à semelhança do que se viu em fevereiro passado.
“Nós fizemos todos os cálculos, de quantos tanques, artilharia, etc., é que precisamos”, explicou Zaluzhnyi, numa rara entrevista ao Economist, a semana passada. Frisando que a vastidão da Rússia favorece-a num conflito prolongado. “É por isso que, como durante a II Guerra Mundial, não tenho dúvidas que algures para lá dos Urais, eles estão a preparar novos recursos”, garantiu. Se da primeira vez que se atiraram contra Kiev, Kharkiv e Kherson os russos tinham passado uns três anos e meio ou quatro a acumular recursos, estimou o general, desta vez o potencial destrutivo não será o mesmo.
Mesmo que Putin “aliste mais de um milhão de pessoas no exército para atirar corpos como Zhukov, isso não lhe trará os resultados desejados”, assegurou Zaluzhnyi, referindo-se ao general favorito de Estaline, que virou a maré contra a invasão nazi da URSS. Contudo, “munições estão a ser preparadas, não muito boas, mas ainda assim”, ressalvou. E até agora as batalhas desta guerra têm sido vencidas pelo lado que consegue fazer chegar munições às suas tropas mais rapidamente, acrescentou Syrskyi ao jornal britânico. E este general, o responsável pela defesa de Kiev e pela contra ofensiva a sudeste de Kharkiv, que está na linha da frente desde o início, pediu cautela, por mais surpreendentemente desastrosa que tenha sido o desempenho militar russo. “Os russos não são idiotas”, garantiu este antigo cadete soviético. “Não são fracos. Quem quer que os subestime encaminha-se para a derrota”.
Tarefa Para Zaluzhnyi, um antigo cadete do Instituto de Odessa para Forças Terrestres com 48 anos, oriundo do oeste de Ucrânia, esta guerra começou em junho de 2014, quando foi posto no comando de parte da linha da frente em Donetsk. Deu por si a gerir o caos de um exército “literalmente em ruínas”, como descreveu o então chefe do Estado Maior, Viktor Muzhenko, citado num relatório da Carnegie Endowment for International Peace. A corrupção era sistémica e a lealdade de muitos oficiais estava sob suspeita, após passarem anos a sustentar o regime pró-russo de Viktor Yanukovych, tendo uns 70% dos militares ucranianos estacionados na Crimeia passado para o lado do Kremlin durante a anexação da península.
O trabalho de Zaluzhnyi, que foi nomeado vice-comandante do Setor C, no norte de Donetsk, incluindo Bakhmut, foi pegar em oficiais juniores, alguns com vinte e poucos anos, e ensiná-los a liderar recrutas que muitas vezes eram mais velhos, conscritos numa mobilização militar parcial. “Eles, com a vida e sangue, deram-nos o que nós temos”, recordou o general o ano passado, quando foi escolhido para comandante-em-chefe das Forças Armadas, citado na BBC ucraniano. “Eles pararam o inimigo. E agora estamos nas nossas posições… É o mérito deles”, saudou. Em fevereiro, a resiliência dessas tropas no Donbass, que se converteram na espinha dorsal do exército que resistiu à invasão, seria crucial para fixar tropas russas e impedir o Kremlin de lançar tudo o que tinha na sua ofensiva contra Kiev.
A vantagem do estado degradado das Forças Armadas ucraniana foi tê-las obrigado quase a começar de novo, deixando para trás as doutrinas de comando soviético, baseadas na disciplina e obediência à cadeia de comando, aproximando-se do modelo NATO, que deixam boa parte da iniciativa em oficiais juniores. Em contraste com a linha seguida por generais russos como Sergei Surovikin, atual comandante das forças do Kremlin na Ucrânia.
“Com todo o respeito ao sr. Surovikin”, notou Zaluzhnyi, na sua entrevista ao Economist. “Se olharem para ele, ele é um comum comando petrovita, saído do tempo de Pedro o Grande”, frisou. “Tu olhas para ele e percebes que ou completas a tarefa ou estás f*****. E nós percebemos há muito tempo que isso não funciona”, disse o comandante-em-chefe das Forças Armadas ucranianas.
Êxito surpreendente Quando Syrskyi preparava a defesa de Kiev, sabia bem que tinha muitos colegas de escola do outro lado da barricada. Nascido há 57 anos em Vladimir, na então União Soviética, a uns 200 km a oeste de Moscovo, vivia na Ucrânia desde a década de 80. Mas não era por ter raízes no país vizinho que duvidasse que Putin lançasse uma ofensiva contra a capital ucraniana. Simplesmente parecia-lhe louco que o Kremlin expusesse as suas forças ao horror do combate urbano para conquistar uma cidade com quase três milhões de habitantes.
“Honestamente, não conseguia sequer imaginá-lo”, contou ao Washington Post Syrskyi, que dirigiu o assalto a Debaltseve, em 2015, um dos combates mais duros na guerra do Donbass, ficando encarregue de todas as operações contra os separatistas, em 2017, ficando depois responsável de preparar planos de contingência para um eventual ataque russo à capital, apesar de o achar improvável. “Parecia-me que caso começassem as hostilidades ativas, provavelmente começariam no leste, à volta ou dentro da fronteira das regiões de Donetsk ou Lugansk”.
Aí, Syrskyi enganou-se, mas os planos que preparara tiveram êxito surpreendente. Conhecedor das táticas russas, assumiu que iriam avançar ao longo de duas ou três autoestradas, direitos às principais instalações governamentais da capital. Como tal, estabeleceu dois anéis defensivos, um nos subúrbios outro no centro da cidade, com generais encarregues de cada setor, numa cadeia de comando clara e com autonomia para tomar decisões sem consultar ninguém. Foi algo essencial nos primeiros momentos da invasão, quando ciberataques russos incapacitaram os satélites utilizados pelos militares ucranianos, deixando-os sem comunicações numa altura em que se especulava que Zelensky estaria em fuga. Entretanto, o Presidente ucraniano deu-se a mostrar ao mundo, pedindo aos americanos “munições, não boleia”. Entretanto a estrutura montada por Syrskyi aguentava em defesa da capital
Meses depois, no verão, quando a maré da guerra mudou, seria este general a dirigir pessoalmente a contra ofensiva no sudeste de Kharkiv, sendo creditado por ter detetado esse buraco na linha da frente russa. E colocaria como ponta de lança a 72ª Brigada Mecanizada, que já comandara na defesa de Kiev.
Nessa contra ofensiva, conseguiu tomar numa questão de dias duas localidades essenciais para o abastecimento russo, Kupiansk e Izyum, apesar desta última ter sido transformada numa espécie de fortaleza a céu aberto. O próprio general ficou surpreendido com a velocidade a que os russos fugiram em pânico. Mas não conseguiu aproveitar isso tanto quanto gostaria, por não ter recebido reforços suficientes, admitiu ao Economist. “Estamos sempre com falta de tropas. Nós tivemos a combater esta guerra com reservas praticamente o tempo todo”, lamentou. Além das suas forças terem sido travadas em alguns pontos, por os comandantes russos estarem a atirar para a frente os reservistas alistados à força na mobilização militar parcial de Putin. A lição que tirou disso foi que, apesar do ceticismo de alguns analistas ocidentais, o recrutamento em curso na Rússia poderá ter um impacto enorme daqui a uns meses, quando o novo exército preparado pelo Kremlin for lançado no campo de batalha.