Balanço. As descobertas e surpresas que nos trouxe 2022

Um autorretrato de Van Gogh que esteve escondido quase 150 anos e um navio lendário sepultado nas águas geladas estiveram entre as principais revelações de um ano que também ficou marcado por um leilão recordista e um ataque infame.

Pintura
O mais antigo autorretrato de Van Gogh

Em julho do ano passado, enquanto preparavam a exposição A Taste of Impressionism, dedicada às origens da pintura moderna francesa, os técnicos de restauro das National Galleries of Scotland fizeram uma descoberta surpreendente.

O exame de raio-x a um quadro de Van Gogh de 1885 revelou uma imagem espectral pintada na parte de trás da tela. Era uma espécie de moeda com duas faces: na da frente, uma camponesa singela; na de trás, escondido, nada menos do que um autorretrato. Na radiografia, o pintor holandês surge a três quartos, de chapéu e com uma fita ao pescoço.

Mais: os especialistas julgam tratar-se da primeira de muitas representações que Van Gogh fez de si próprio.

Era comum, em momentos de maior penúria, os artistas reutilizarem telas já usadas para satisfazerem a necessidade de pintarem novos quadros. Sem dinheiro para comprar material, Van Gogh terá virado o seu autorretrato do avesso e pintado a camponesa do lado ainda virgem da tela.

Mas como resgatar esta relíquia? O que se passa é que a pintura está tapada por camadas de cola e de cartão, pelo que os técnicos de restauro têm agora pela frente o desafio de perceber se, e como, conseguem retirar estas camadas sem danificar o autorretrato.

Naufrágio
A resistência do Endurance 

Outra das descobertas sensacionais de 2022 encontra-se sepultada a três mil metros de profundidade, no silêncio das águas geladas do Mar de Weddell. O Endurance ficara aprisionado num banco de gelo durante a ambiciosa expedição de Ernest Shackleton para atravessar a Antárctida, destinada a restaurar o prestígio britânico, depois de em 1911 a equipa do explorador norueguês Roald Amundsen ter vencido a corrida ao Polo Sul. Aos poucos, as movimentações das massas de gelo foram estrangulando a embarcação, até a estrutura ceder por completo com um rugido terrível e acabar por ir ao fundo.

A descoberta do navio foi feita pela expedição Endurance22, que custou mais de nove milhões de euros (oferecidos por um anónimo) e partiu da Cidade do Cabo, África do Sul, no início de fevereiro deste ano. «Concluímos com sucesso a busca mais difícil do mundo, lutando contra gelo marinho, nevões e temperaturas abaixo dos 18 graus negativos», congratulou-se John Shears, geógrafo polar e chefe da missão. «Conseguimos o que muitas pessoas diziam ser impossível». A proeza foi tornada possível graças ao uso de tecnologia de ponta, como veículos submarinos equipados com scanners de alta definição, e condições atmosféricas excecionais naquelas águas habitualmente perigosas e agitadas.

Originalmente construído para a caça à foca, o Endurance tinha características que o tornavam único. Christian Jacobsen, o mestre naval do estaleiro da Framnaes, em Sandefjord, na Noruega, que comandou o projeto insistiu em empregar homens que «tinham estado no mar em navios baleeiros e de caça à foca, que se interessaram ciosamente pelos mais pequenos detalhes do Endurance», escreveu Alfred Lansing no clássico de 1959 Endurance: A incrível viagem de Shackleton. O casco era feito de pranchas de carvalho e abeto da montanha com uma espessura entre 45 cm e 75 cm. Por cima destas tábuas, «havia um revestimento de proa, a popa de Chlorocardium rodiei, uma madeira mais pesada que ferro maciço e tão resistente que não pode ser trabalhada com ferramentas comuns». O resultado era de uma solidez impressionante. «Quando foi lançado ao mar em 17 de dezembro de 1912, o Endurance era o navio de madeira mais resistente alguma vez construído na Noruega – e provavelmente em qualquer outro lugar, com a possível exceção do Fram, o navio usado por Fridtjof Nansen, e mais tarde por Amundsen», escreveu Lansing.

Mas o que torna esta descoberta tão importante não é tanto o navio em si como a extraordinária aventura da sua tripulação.

Quando o Endurance encalhou, em outubro de 1914, Shackleton e os seus 27 homens estavam confiantes de que acabaria por libertar-se do gelo e conseguiriam retomar a navegação – afinal, o seu destino encontrava-se a menos de cem milhas de distância. Ao fim de cinco meses, porém, perderam a esperança e decidiram prosseguir em trenós. Shackleton era um líder nato. Para dar o exemplo, pegou num punhado de moedas de ouro e no seu relógio também de ouro, numa Bíblia (de que guardou apenas a página com a dedicatória da Rainha), entre outros objetos preciosos, e atirou-os para a neve sem olhar para trás. Dali em diante não ia precisar deles. Todos levariam apenas o essencial. Os animais de estimação também foram abatidos.

Durante os 497 dias que passaram a lutar contra o frio e o vento cortante, depois de se esgotarem os mantimentos, os homens comeram focas, pinguins e leões-marinhos para sobreviver – além das aves que conseguissem alvejar. Em três botes salva-vidas, conseguiram chegar, com enorme dificuldade, à inóspita ilha do Elefante. Aí, a vida retomou a sua rotina de tédio e de privações. O salva-vidas mais sólido, o James Caird, foi preparado para enfrentar um dos mares mais temíveis do mundo, onde os ventos atingem os 300 km/h e as ondas chegam facilmente perto dos 30 metros. Com os seus sete metros de comprimento, as probabilidades de o James Caird resistir eram baixas. Ainda assim foi lançado ao mar com um pequeno grupo dos homens mais capazes, a 24 de abril de 1916. No meio de um nevoeiro denso, houve dias em que a incerteza se tornou quase insuportável. Na noite de 4 para 5 de maio o barquinho foi submergido por uma onda gigantesca… e resistiu. «Foi um ponto de viragem», afirma Lansing. A 7 de maio, depararam-se com algas, um sinal de que havia terra por perto. No dia seguinte avistaram a ilha da Geórgia do Sul.

Tinham percorrido cerca de 1300 km em condições inimagináveis.

Do outro lado da ilha, situava-se uma estação baleeira onde foram recebidos com assombro, como se de fantasmas se tratassem. Faltava ainda resgatar os homens que tinham ficado na ilha do Elefante à espera, objetivo que só foi atingido à quarta tentativa.

106 anos depois do naufrágio, o casco do Endurance foi localizado. Encontra-se na vertical, num estado de conservação quase milagroso. É possível ler o nome de baptismo do navio na popa e até «ver os buracos que os homens de Shackleton fizeram no convés para retirar os mantimentos», contou à Reuters o arqueólogo Mensun Bound, um dos membros da expedição. A bióloga polar Michelle Taylor referiu que «há pouca deterioração da madeira», porque «os animais que comem madeira e que encontramos noutras áreas do oceano não existem na Antártida». Por uma coincidência espantosa, a descoberta do Endurance – que afinal de contas significa ‘Resistência’ (e também capacidade de sofrimento) – deu-se no preciso dia do centésimo aniversário do funeral do seu capitão, que morreu de ataque cardíaco quando se preparava para iniciar uma expedição que se propunha circum-navegar o continente Antártico.

Arqueologia
Howard Carter salteador de túmulos? 

Em 2022 assinalou-se o centenário da descoberta do túmulo do Faraó Tutankhamon, que serviu de mote para exposições em todo o mundo – inclusive em Lisboa, com Faraós Superstars, patente na Fundação Calouste Gulbenkian até 6 de março de 2023.

Nem tudo, porém, foi motivo para celebrar. O centenário trouxe também uma revelação ‘incómoda’: Howard Carter, o arqueólogo britânico responsável pela escavação, apoderou-se ilegitimamente de alguns artefactos.

Tutankhamun and the Tomb that Changed the World, de Bob Brier, publicado este ano, reproduz uma carta comprometedora de Alan Gardiner, um especialista na tradução de hieróglifos, para Carter.

«O amuleto whm que me mostrou foi sem dúvida roubado do túmulo de Tutankhamon», escreveu Gardiner. Antes, Carter havia negado ser essa a proveniência do pequeno objeto.

As suspeitas já vinham de trás. Há muito que se dizia que o arqueólogo havia aberto o túmulo em segredo, voltando depois a selá-lo para a cerimónia oficial. «Em 1947, vários anos após a morte de Carter, Alfred Lucas, um dos poucos membros da equipa arqueológica que trabalhou no túmulo de Tutankhamon do princípio ao fim, escreveu um artigo onde indica que Carter teria entrado secretamente na câmara funerária do monarca egípcio logo após a sua descoberta», comentou ao Nascer do SOL a egiptóloga Inês Torres, investigadora do Centro de Humanidades da FCSH, Universidade Nova de Lisboa. Essa incursão teria dado ensejo ao arqueólogo inglês para retirar discretamente alguns artefactos.

A revelação da conduta imprópria de Howard Carter deixou a comunidade de egiptólogos dividida. Ofacto é que, se por um lado desviou objetos do túmulo, Carter foi também decisivo para um salto qualitativo no conhecimento que temos do Antigo Egipto, dado tratar-se de um arqueólogo altamente metódico, cuja «minúcia e atenção ao detalhe permitiram que a escavação do túmulo de Tutankhamon fosse uma das mais bem documentadas do princípio do século XX, o que nos permite hoje ter acesso a informação absolutamente crucial para a nossa interpretação do túmulo e dos artefactos aí depositados», defendeu Inês Torres.

Leilão
Fundador da Microsoft bate todos os recordes
«Mortes e divórcios de importantes colecionadores dão gás ao recorde de 14,3 mil milhões de libras [16,1 mil milhões de euros] em vendas na Christie’s, Sotheby’s e Phillips», noticiava esta quarta-feira o jornal britânico The Guardian.

2022 foi um ano em cheio para as grandes casas leiloeiras, que faturaram como nunca. 

O maior acontecimento neste mercado foi sem dúvida o leilão da coleção de Paul J. Allen, o co-fundador, com Bill Gates, da Microsoft. Nunca uma venda tinha ultrapassado a fasquia dos mil milhões de dólares.

A enorme fortuna que acumulou permitiu a Paul Allen reunir uma das melhores coleções de arte em mãos privadas, abarcando 500 anos de história, de Sandro Botticelli, a Jasper Johns. «Quando olhas para uma pintura, estás a olhar para um país diferente, para a imaginação de outra pessoa», dizia o magnata.

«Esta venda esgota todos os superlativos», afirmou à Forbes, nas vésperas do acontecimento, o vice-presidente da Christie’s para arte dos séculos XX e XXI, Max Carter. As principais estrelas do leilão foram reunidas na primeira sessão, que incluiu pesos-pesados como Monet, Gauguin, Van Gogh, Picasso, Seurat e Cézanne. 

Les Poseuses, Ensemble, de Georges Seurat, foi arrematada por perto de 150 milhões de euros.

A Montanha Sainte-Victoire, de Cézanne, Pomar com ciprestes, de Van Gogh, Maternité II, de Gauguin, e Floresta de bétulas, de Gustav Klimt, também atingiram valores na casa dos cem milhões de euros.

Falecido em 2018, aos 65 anos, Allen tinha decidido em 2010 deixar a maior parte da fortuna para caridade. E foi exatamente esse o destino das receitas realizadas no seu leilão.

Criado em Seattle, onde o seu pai trabalhava como diretor associado das Bibliotecas da Universidade de Washington, frequentou a Lakeside School – uma escola particular –, onde se tornou amigo de Bill Gates, com quem partilhava um interesse por computadores. Juntos começaram a aprimorar as suas competências de programação, acabando por fundar a Microsoft. Allen era o homem das ideias, enquanto Gates sabia como torná-las rentáveis.

Além das suas descobertas e criações tecnológicas, em Seattle Allen também fundou o Museu de Cultura Pop (era um apaixonado por Jimi Hendrix e pela saga Star Trek). Segundo o The Guardian, começou a colecionar arte após uma visita, no início dos anos 1990, à Tate Gallery, em Londres.

Obcecado pelos oceanos, Allen era dono do Octopus, o maior iate do mundo quando foi construído em 2003, com 126 metros e dois heliportos.

Também em 2022, a Christie’s vendeu um retrato de Marilyn Monroe feito por Andy Warhol, Shot Sage Blue Marilyn, por 195 milhões de dólares, a segunda obra de arte mais cara alguma vez vendida em leilão.

Outro destaque do ano vai para um Mercedes-Benz 300 SLR Uhlenhaut Coupé It, de 1955, que atingiu 114 milhões de libras – algo como 130 milhões de euros. É de longe o carro mais caro de sempre, deixando a grande distância um Ferrari 250 GTO de 1962, vendido por 48 milhões de dólares em 2018.

Literatura
Rushdie esfaqueado 33 anos depois da fatwa

Talvez mais do que por qualquer livro ou prémio, o ano literário ficou marcado por um acontecimento com tanto de insólito como de dramático: o esfaqueamento de Salman Rushdie por um radical islâmico.

O incidente ocorreu numa sexta-feira, 12 de agosto, quando o escritor britânico se preparava para dar uma palestra no Instituto Chautauqua, Nova Iorque, que se define como «uma comunidade de artistas, educadores, pensadores, líderes religiosos e amigos dedicados a explorar o melhor na humanidade».

Com dez facadas no pescoço, o autor foi de imediato levado de helicóptero para um hospital e ligado a um ventilador. O ataque, perpetrado por um jovem de 24 anos, ocorreu 33 anos após a infame fatwa, emitida pelo aiatola Khomeini na sequência do livro Versículos Satânicos. O ataque a Rushdie foi celebrado em Teerão. O suspeito, Hadi Matar, é um americano de origem libanesa. Foi detido no próprio dia do ataque e declarou-se inocente em tribunal.

Portugal
Uma caixa-forte para as joias da coroa
As eleições de 30 de janeiro, que determinaram a maioria absoluta do Partido Socialista, trouxeram novidades no campo da cultura: Pedro Adão e Silva, comentador e professor universitário, nomeado comissário das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, assumiu a pasta. E de imediato mostrou-se determinado a deixar a sua marca no lugar. Por exemplo, ao determinar a extinção da Fundação Berardo, cuja coleção passará para a tutela do Estado. O mesmo deverá acontecer com a importante coleção de arte contemporânea da Ellipse Foundation – criada pelo banqueiro João Rendeiro, falecido este ano –, que foi alvo de avaliação e poderá mesmo ser fundida com a de Berardo numa mesma instituição.

Ainda no domínio dos museus, 2022 foi ano de encerramento do Museu de Arqueologia, nos Jerónimos, que está previsto reabrir em 2025 após obras avaliadas em 25 milhões de euros.

Já na Ajuda, foi inaugurado e abriu ao público, no início de junho, o Museu do Tesouro Real, onde se expõem as Joias da Coroa. Trata-se de um marco assinalável, uma vez que, além da exposição das joias, representa o fechar de um capítulo que durou mais de dois séculos: com este museu, finalmente ficam concluídas as obras do Palácio da Ajuda.
«A opção foi construirmos uma caixa-forte onde temos a exposição permanente. Tem uma grande dimensão, 40 metros de comprido por dez metros de largura e dez metros de altura», explicou na ocasião o arquiteto João Carlos Santos. No interior, há diamantes e pedras preciosas, coroas, moedas, ordens honoríficas, a famosa baixela Germain e até uma pepita de ouro gigante. As vitrinas são à prova de bala.

Numa nota mais polémica, os apoios à criação (ou a falta deles) foram alvo de forte contestação no setor. A Seiva Trupe, a Companhia Clara Andermatt, a Casa Conveniente e a Música Portuguesa a Gostar dela Própria foram alguns dos projetos excluídos.

Pedro Adão e Silva rejeitou no entanto as críticas, sublinhando que houve o «dobro da dotação e mais entidades» apoiadas. «Quanto à insatisfação, o que eu digo e disse hoje é que os procedimentos concursais com júris independentes são fundamentais», respondeu.

 * Com Sara Porto