Com o Ano Novo, vieram promessas renovadas do Kremlin e de Kiev, que tentam quebrar o impasse sangrento na linha da frente. Ambos os lados precisam de mais recursos humanos e equipamento para o fazer, sendo que do lado russo se prepara mais uma vaga de mobilização militar, alertou o ministro da Defesa ucraniano, Oleksii Reznikov. Contudo, não só muitos russos se mostram dispostos a tudo para evitar o horror que se vive na Ucrânia, como carne para canhão não resolve a falta de militares experimentados, à medida que as baixas aumentam. Daí que há meses que o Kremlin olha para o estrangeiro, através dos esforços de recrutamento da Wagner, procurando gente capaz, disponível e sem mães que possam causar problemas na Rússia. Já foram buscar recrutas à Síria, Líbia ou República Centro-Africana, mas alvo particularmente apetitoso são os 20 ou 30 mil comandos afegãos treinados pela CIA e pelo Pentágono, antes de serem abandonados pelos seus antigos aliados nas mãos dos talibãs.
Pouco mais de uma centena destes combatentes experimentados foram retirados do Afeganistão, após anos a serem treinados pelos Boinas Verdes, SEALS ou até pela CIA. Alguns foram torturados e massacrados pelos seus antigo inimigos. Boa parte fugiu para o Irão, um aliado próximo do Kremlin, que se tornou crucial para o esforço de guerra na Ucrânia ao fornecer drones baratos, tendo o Ocidente acusado Teerão de estar a negociar também a venda de mísseis balísticos de curto e médio alcance aos russos. De repente, os comandos afegãos perderam todo o seu estatuto, deram por si como refugiados. Muitos estão furiosos, queixando-se dos desprezo dos seus anteriores mentores americanos, descrevendo nos seus grupos de Whatsapp serem relegados a trabalho manual ou até a vasculhar o lixo para sobreviver, mostram mensagens vistas pela Radio Free Europe, a semana passada, comprovando algo que se temia há muito.
“O Afeganistão, a NATO e os EUA criaram-nos quando éramos jovens e abandonaram-nos”, queixou-se uns destes comandos afegãos. Incentivando outros a juntar-se à Wagner, dado a Rússia estar a oferecer cidadania – algo que os EUA negam a estes combatentes, dado a maior parte não ter trabalhado diretamente para as forças americanas, ainda que combatessem ao seu lado e tivessem muitas vezes os seus salários pagos por Washington – aos comandos afegãos que se alistem, além de abrigo para suas famílias, pagando-lhes o equivalente a uns 1500 dólares por mês. Um antigo oficial afegão estimou à RFE que pelo menos 2 500 camaradas já seguiram para a Rússia, encaminhando-se para a Ucrânia.
À procura de forças especiais À primeira vista, pode parecer um número relativamente pequeno de comandos afegãos recrutados, dada a escala das perdas russas na Ucrânia, estimando o Pentágono que tenham chegado aos cem mil mortos. O Estado Maior ucraniano gabou-se do abate de 400 tropas russas num único ataque, no Ano Novo, atingindo um edifício em Makiivka, no oblast de Donetsk. O Kremlin anunciou que a Ucrânia lançou seis mísseis de longo alcance HIMARS, garantiu que dois foram intercetados, mas admitiu ter perdido 63 militares – dado que o regime russo raramente reconhece baixas, isso é apontado como sinal que o ataque foi tão catastrófico que não dava para esconder.
Já bloggers militares russos, ainda mais extremista que Putin e conhecidos por terem boas fontes na linha da frente, queixaram-se que morreram centenas de tropas. A maior parte era recrutas à força, apanhados na mobilização militar parcial, relatou no Telegram Igor Girkin, um antigo espião do Serviço Federal de Segurança (FSB, em russo) que dirigiu os separatistas do Donbass em 2014. Os recrutas mortos estavam tão despreparados que guardaram as munições perto das casernas e mantinham o seu equipamento ali perto, sem qualquer tipo de camuflagem, notou Girkin, expondo-os ao olhar dos drones ucranianos, bem como dos satélites e aviões satélites operados pela NATO.
É exatamente por essa falta de experiência crónica que alguns milhares de comandos afegãos se podem tornar cruciais para a próxima fase da guerra. Tendo o Governo ucraniano já avisado que Putin preparava um novo exército, pretendendo atirá-lo numa nova ofensiva na próxima primavera, antevendo até mais um ataque contra Kiev.
Não parece difícil que o Kremlin consiga o seu objetivo de mobilizar 300 mil homens, com analistas a estimar que uns 50 mil já estejam a tapar buracos na linha da frente e os restantes ainda a treinar. Mas algo de que faz particularmente falta ao Kremlin são forças especiais, tendo perdido boa parte delas nas primeiras horas da sua invasão. Perderam a vasta maioria dos seus spetsnaz pré-posicionados dentro da Ucrânia, à espera de facilmente derrubar o Governo, avançou o Financial Times, bem como os paraquedistas que lançaram no aeroporto de Hostomel, em Kiev, descendo de helicópteros em rappel, tomando-o e ainda conseguindo descarregar os seus tanques ligeiros antes de serem aniquilados. A tentativa de avançar por Kharkiv a dentro foi igualmente desastrosa, com a destruição da 200.ª Brigada Motorizada, uma unidade especializada sediada no Ártico, que foi apanhada em sucessivas emboscadas, relatou o Washington Post. Sendo que, seis meses após o início da invasão, a BBC já tinha verificado a morte de 900 soldados de elite russos.
Os comandos afegãos recrutados pela Wagner não só trazem consigo experiência de combate, mas também conhecimento na primeira pessoa nas táticas da NATO. As mesmas táticas que as forças ucranianas têm sido treinadas a utilizar. “Não quero vê-los em nenhum campo de batalha, francamente. E certamente não a combater os ucranianos”, avisou Michael Mulroy, um oficial reformado da CIA, num relatório do Congresso quanto ao risco dos comandos afegãos serem recrutados por outros países, citado pela Associated Press em outubro.
Entretanto, se a Wagner vai buscar forças de elite ao Afeganistão, também tem ido buscar carne para canhão a outros países. Esta empresa de mercenários não só tem recrutado nas prisões russas, também o fez nas prisões da República Centro-Africana. O Presidente centro-africano, Faustin-Archange Touadéra, faz uma estranha dança, procurando o apoio da ONU – tendo contado com sucessivas missões portuguesas para sobreviver à guerra civil – e sendo um leal aliado de Moscovo, mantendo mercenários da Wagner à mão.
Estes, além do seu bem documentado envolvimento no tráfico de diamantes, aproveitaram a hospitalidade de Touadéra para recrutar combatentes rebeldes capturados, incluindo suspeitos de utilizar a violação em massa como arma, avançou o Daily Beast em novembro. Os rebeldes tinham combatido pela União para a Paz na República Centro-Africana (UPC, em francês), uma milícia com que os capacetes azuis travaram uma dura batalha na cidade de Bambari, em 2019, ao longo de mais de três horas. Nas mãos da Wagner, o castigo que aguardava os rebeldes seria tão mau ou pior que uma prisão centro-africana, tendo pelo menos uma centena sido abandonados numa aldeia no Donbass, com ordens para se defenderem e praticamente sem quaisquer abastecimentos.