Zambeze. Os novos predadores

Há quem sonhe com novos lucros e queira transformar a reserva numa área de exploração mineira ou agrícola.

Por Fernando Lima

 

350km a norte da cidade da Beira estão implantadas quatro coutadas de caça numa extensão de 1,2 milhões de hectares e que tem como fronteira natural o rio Zambeze. As coutadas são áreas concessionadas pelo Estado para exploração privada e onde se pratica a caça desportiva.

Junto ao delta do Zambeze está a espectacular reserva de búfalos de Marromeu. De algumas centenas de animais que sobreviveram às grandes matanças da guerra desde os finais dos anos 70, a zona tem agora uma manada de 25.000 animais.

Ao todo são dezenas de milhares de antílopes de grande porte, elefantes, zebras, hipopótamos, crocodilos. A área pantanosa, a má qualidade dos solos para a agricultura, tem tradicionalmente mantido a população longe das áreas de caça. O número de abates controlados é pequeno. Algumas centenas de animais por ano, sobretudo antílopes e búfalos.

A dimensão do negócio ainda é modesta – quatro milhões de dólares anualmente – mas o potencial é enorme e, sobretudo, pode responder a alguns dos dramas da conservação faunística em países de baixa renda, como é o caso de Moçambique. Neste negócio, o Estado recebe também a sua parte. Qualquer coisa como 1,5 milhões de dólares em licenças, senhas de abate, taxas, impostos e certificados CITES, um contributo não negligenciável para reinvestir em conservação. E o reconhecimento internacional de país comprometido com as políticas de conservação e biodiversidade do meio ambiente.

No fim de cada ano, quando cessam os tiros das carabinas de caça, uma das coutadas introduziu um novo negócio. A observação de aves locais e migratórias que têm habitat único no vale do Zambeze. Na zona de floresta de savana e nos tandos pantanosos. Desde 2017 são já dezenas de turistas vindos de toda a África Austral, com particular destaque para a África do Sul.

A população da zona recebe uma quota estabelecida de carne de caça, apoios para actividades agrícolas e incentivos sociais como novos escolas, postos de saúde e poços para acesso a água potável. As zonas de floresta enquadradas nas coutadas mantêm milhares de árvores centenárias, longe do insaciável apetite dos “take away” chineses associados aos seus cúmplices locais, infelizmente com protecções conhecidas de oficiais do governo e barões locais da Frelimo.

Para reduzir o terrível desequilíbrio entre herbívoros e espécies predadoras de carnívoros, praticamente extintos, as coutadas, com as suas receitas e o apoio internacional, têm investido no repovoamento. Primeiro com a importação de leões, mais recentemente com a reintrodução de chitas, uma espécie dada como extinta na região, no princípio do século XX. Os leopardos, as hienas e os cães selvagens, embora em pequenos números, nunca chegaram a desaparecer por completo.

Os 24 leões chegados em 2018 são hoje 80. A reprodução das chitas tem sido mais problemática. Ao fim de 16 meses depois da reintrodução dos “grandes gatos” em julho de 2021, noticia-se o primeiro nascimento no delta do Zambeze. Mas a caça furtiva reduziu a metade o efectivo introduzido no ano passado, colmatado com novas chegadas em 2022. 

A caça desportiva paga também as unidades anti-furtivos que foram estabelecidas nas coutadas, responsáveis por destruírem anualmente milhares de laços e armadilhas potentes, feitas a partir de molas de camião nas serralharias artesanais da vila de Marromeu, sob o olhar cúmplice de quem devia ter mão mais pesada.

Esta é uma das pragas. Mas a curto/médio prazo colocam-se outros desafios terríveis. Mesmo com solos pobres, a pressão da população não cessa de aumentar, trazendo enormes queimadas para a prática de agricultura itinerante. As elites predadoras também não têm simpatia pelas coutadas. Há uma clara pressão para a diminuição das áreas cinegéticas, o que põe em perigo as espécies faunísticas e a imponente flora da região, que continua a trazer anualmente precipitações pluviométricas recorde. 

Há quem pense em novos lucros com explorações mineiras em Macossa ou no potencial de rubis na reserva do Niassa. O jogo perverso esconde o inesgotável negócio da terra dos que se sentam na mesa do poder e que sonham com a riqueza a partir dos que do exterior estão prontos a transformar a conservação em zonas de exploração mineral ou farmas agrícolas para culturas de rendimento. 

Tristemente, a conservação e o negócio cinegético pode ter os seus dias contados se o Estado fechar os olhos aos predadores humanos  em busca de “novas oportunidades”.