Por Maria de Jesus Cabral
Diz-nos Saint-Exupéry: «Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos». Partindo deste mote, e impelidos pela imagem da rosa, tão presente na sua poética, podemos dizer que há livros que são como perfumes: quanto menor é o seu tamanho, mais sentidos exalam nas leituras que vamos realizando ao longo dos tempos. O Principezinho permanece, oitenta anos depois de sua publicação, um dos livros mais lidos e mais traduzidos do planeta. Provavelmente é também o livro que mais tem suscitado uma experiência continuada de leituras, tantos são os leitores que confessam ter regressado a ele em momentos distintos da vida.
Simplicidade e subtileza: toda a poética de Saint-Exupéry converge em palavras, símbolos e figuras que se elevam da narrativa para nos envolver numa viagem cintilante, espacial porque realizada nas estrelas e nos asteroides, desafiando noções de espaço e de tempo. Parecendo começar na infância do narrador, a história logo nos conduz ao espaço aberto e intemporal de um encontro no deserto pautado pela surpresa e por alguma incredulidade. Durante esse encontro o aviador aprende a conhecer o Pequeno Príncipe, processo do qual ele sairá crescido, transformado, tendo reparado os valores de uma infância adormecida em si: a imaginação, a criatividade, o desejo de explorar e de compreender. «É um trabalho entediante, mas bem fácil», conforme diz o pequeno herói a propósito de sua tarefa matinal: cuidar o seu pequeno planeta, distinguindo os baobás das roseiras. Numa clara inversão de papéis, vão-se assim desvendando aos olhos do aviador mistérios sucessivos: a graça do pôr do sol, o desconcertante mundo das lágrimas, a diferença singularizante de cada ser e como «é pequeno onde moramos»…
Por fim compreendemos que há lugar para ser um por mais extenso e comum que seja o roseiral e que não há consciência de si sem tomada de consciência do outro. É o que diz numa linguagem simples, mas não, simplista, a raposa por meio da metáfora do «criar laços». É o que entende e poderá transmitir por sua vez o pequeno príncipe ao aviador: num mundo de penhascos, de pessoas ensimesmadas e presas em formulações conclusivas, só o questionamento e a dúvida permitem ir além. O cerne da narrativa –numa cronologia de cerca de oito dias – propõe, passo a passo, um olhar perscrutador sobre o homem e o mundo. Espacial, aberta ao universo, a expedição do jovem herói atraca em lugares ocupados por personagens-tipo, e, na sua aprendizagem, acaba por rejeitar tais modelos. Tais características negativas – o autoritarismo do rei, a presunção do vaidoso, a materialismo do homem de negócios, o alheamento do geógrafo – encontram expressão grotesca nos desenhos. Com contornos bem mais suaves, cores mais claras e tons pastel se oferecem as aguarelas do mundo infantil.
Este livro escrito em 1942, durante o ‘exílio’ de Saint-Exupéry nos Estados Unidos e lá publicado em 1943, com o título The Little Prince, acusa o peso da História, da guerra e da solidão. É à luz da França ocupada e também sob o signo dos totalitarismos vigentes na Europa que se pode perceber o «sentimento de urgência» a que alude o narrador a propósito do desenho dos baobás, onde se pode ler uma metáfora visual do nazismo. Esse momento é crucial do ponto de vista literário e pessoal, pois foi no regresso à França, em 1944, para integrar uma missão militar aérea que Saint-Exupéry desapareceu, sem deixar rasto. A intemporalidade da mensagem de Saint-Exupéry resulta, pois, da atemporalidade dos termos, temas e motivos que regressam e dialogam de obra para obra, solicitando uma leitura profunda e atenta.
Nesse contexto, é oportuno observar que o elo que põe em sintonia o aviador e o pequeno príncipe é uma caixa, depois dos malogrados exemplos de não comunicação entre criança e adultos na infância e adolescência do narrador. Num teste inesperado, mas significativo, o pequeno herói consegue ler o «elefante dentro da jibóia» como consegue ver o carneiro dentro da caixa. É notável a força simbólica desse elemento que ilustra a imaginação como princípio ativo do conhecimento, ou como um jogo, como desenvolveram exímios pensadores da literatura, como Michel Picard.
As vivências e experiências do escritor terão por certo influenciado o seu imaginário, mas terão sobretudo levado a encontrar novos sentidos (na dupla aceção da palavra) para uma obra que, afinal, contraria a dogmatização e a simplificação.
O jogo da ironia que se esconde no comportamento das «pessoas crescidas» – as que povoam a infância do narrador e as que pontuam a viagem do pequeno príncipe – contrasta com a vigilância e a sensibilidade dos animais, todos essenciais nos três momentos-chave do enredo: as aves migratórias na partida do planeta, a raposa transmissora da sabedoria que não encontrara nas «visitas» aos planetas, e a serpente, com o passaporte de regresso. Nesse concerto bestiário ainda há lugar para a borboleta, referência ténue, mas essencial e de grande alcance, se atentarmos nesta simples mas significativa proposta: «É preciso que eu suporte duas ou três lagartas se quiser conhecer as borboletas».
Também não parece acidental a escolha do nome do protagonista, príncipe, cuja origem – princeps – remete ao que é primeiro e originário. Nessa linha, o Pequeno Príncipe é todo e qualquer homem ou mulher, jovem ou mais velho, recetivo às eternas transformações do mundo, feito de passagem e de permanência. E nesse encontro de tempos pela leitura, que entrelaça perceção e memória, instantâneo e profundidade, experiência e interpretação, a literatura realiza-se como construção de mundos possíveis. De caixas sempre abertas a novas leituras.
O Pequeno Príncipe simboliza, por fim, o próprio poema no sentido amplo de criação ou invenção pela linguagem, de dar ao sujeito palavra e dar à palavra voz. No cerne da sua mensagem, a (po)ética de Saint-Exupéry continua tão atual, tão precisa e tão urgente como há oitenta anos atrás.