1. As surpresas sucedem-se em catadupa… quando acreditamos que finalmente ‘a tempestade vai amainar’ depois de tantas peripécias que originaram mais de uma dezena de saídas do Governo, ainda conseguimos ficar estupefactos com novos casos e a pensar quais serão os padrões e referências de certas pessoas.
Carla Alves deve ter batido o record da permanência mais curta no Governo de Portugal – 25 horas! O espantoso é que teve de ser o Presidente Marcelo a chamar a atenção para o facto da recém-nomeada não ter condições políticas para continuar num cargo governamental, por ter pelo menos uma conta bancária arrestada (em conjunto com o Marido). Como é possível que nem a Ministra da Agricultura nem António Costa percecionem que um episódio destes configura um impedimento ético para qualquer cargo governamental, insistindo numa guerra perdida? Sobretudo, como é possível que o Marido da própria visada, em entrevista pressurosa a assumir todas as culpas e a ilibar sua Mulher, não clarifique tudo para a opinião pública, nomeadamente sobre a origem dos dinheiros que o Ministério Público entende como inexplicados?
Nem a poeira ainda estava assente quando Costa se lembrou de escrever uma carta a Marcelo, segundo a qual propõe, ao que se lê e ouve, que as verificações de idoneidade dos candidatos a funções governativas apenas sejam efetuadas após os nomes serem propostos ao Presidente. Mas será que as responsabilidades agora estão invertidas? Como carta com carta se responde, Marcelo, que já tinha anunciado verbalmente a sua muito clara e óbvia oposição a ser corresponsável por tais nomeações, só teve de relembrar o que já tinha dito, deixando publicamente Costa em péssimos lençóis. Será que Costa está em ‘burn-out’? Será que os seus conselheiros não perceberam o ridículo e o descrédito em que caiu ao insistir nesta fórmula?
A última das notícias a deixar perplexa a opinião pública foi a ida de Rita Marques, após 16 de janeiro, para uma empresa do setor do turismo, apesar de ter de saber que tal transição para uma organização antes tutelada está proibida por uma lei que prevê um período de nojo de três anos. Punição? Inexiste, ou melhor, não pode voltar durante três anos a funções governativas ou ao Estado, coisa que certamente a deve preocupar imenso. Brilhante Dias e Alexandra Leitão foram lestos a condenar, mas ainda não ouvi ninguém dizer que há que rever a punição prevista, como, por exemplo, aplicar valores pecuniários que faça qualquer um pensar duas vezes antes de ousar prevaricar.
Ia a escrever sobre tudo isto: ‘sem comentários’, mas acho demasiado curto para tanto caso. Os exemplos vêm de cima, sobretudo quando nos referimos a padrões comportamentais, incluindo valores éticos. Quando assim não acontece, é a resiliência da democracia que é testada e isso jamais podemos permitir.
2. Esta semana teve lugar a abertura do ano judicial. Discursos não faltaram, todos em uníssono reconhecendo que muito há a fazer neste setor que se apresenta, desde há décadas, como um dos mais problemáticos na nossa democracia. Foram apresentados diagnósticos bem relevantes sobre as fragilidades da Justiça, mas, tal como em diversos setores da vida portuguesa, o problema nacional não é o de elaborar diagnósticos, mas fazer obra.
Neste aspeto, esteve muito bem a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, ao anunciar a contratação de 200 novos oficiais de justiça e referir que o PRR está dotado de cerca de Eur 267 M de fundos para a digitalização e modernização do setor. É mais do que tempo de concretizar ações e estas medidas são seguramente positivas, porventura escassas para as necessidades de uma justiça com excessiva lentidão em processos-crime ou nos tribunais administrativos e fiscais.
Da cerimónia, registo que o Presidente Marcelo repetiu mensagens de outros anos (como em 2016) sobre a necessidade de um ‘Pacto de Regime’ interpartidário, sobrando a pergunta: como fazer, se ninguém sequer se aproxima para estudar o tema? Não se ficando por aqui, abordou frontalmente a questão da morosidade que enferma o atual sistema e que designou como «justiça de longo fôlego», relembrando que urge repensar as orgânicas, os procedimentos e os recursos do sistema de justiça. Na mouche, digo eu!
Tanto que assim é que o Juiz Conselheiro Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, igualmente meteu a tónica na necessidade de «uma reforma de fundo, com implicações ao nível da própria alteração do modelo de organização judiciária desenhado no texto constitucional», embora descrente na sua exequibilidade nos tempos mais próximos, apesar da revisão atualmente discutida.
A nova Bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, depois de lamentar a «gritante falta de recursos humanos quer ao nível de juízes e procuradores, quer ao nível de funcionários judiciais» (tal como a Procuradora-Geral da República Lucília Gago), aproveitou esta aparição para colocar outro tema crucial no acesso à Justiça, «as custas judiciais que, pelo seu elevado valor, inibem o acesso generalizado à Justiça». Mensagem transmitida, fica o desafio: como, quem e quando se irá resolver?
Outros discursos se ouviram, mas as mensagens supra sistematizam e até apontam caminhos para ajudar a resolver o estado da Justiça. Haja vontade coletiva do Governo e oposição e… trabalhe-se, porque há demasiados anos que desperdiçamos tempo.
P.S. – A FPF escolheu o novo selecionador, um espanhol, e logo saltaram os defensores da lusitanidade, quais ‘padeiras de Aljubarrota’… Os mesmos que ficam orgulhosos quando um português é nomeado selecionador de outro país, esquecem que os melhores portugueses não estão disponíveis, defendendo até soluções precárias com figuras secundárias. Por mim, seja bem-vindo Roberto Martinez!
Nota final – Na semana passada errei na interpretação antecipada que fiz às intenções de voto do Bloco e PAN sobre a moção de censura ao referir que iriam votar contra, quando efetivamente se abstiveram. As minhas desculpas a ambos os partidos.