por Rui Patrício
Escrevi no jornal i, depois Inevitável, durante cerca de dez anos. Chamava-se a crónica Corpo de Delito, título a que muito me afeiçoei. E com ele poderia ter continuado, até porque há muito nesta vida que tem potencial delituoso (ou tem mesmo tudo, sobretudo perante certas visões do mundo mais estreitas, algumas agora de regresso e outras em arrogante novidade), sendo também certo que tudo ou quase tudo deixa vestígio, pelo que delito e corpo dele estava muito a meu gosto. Mas mudando de poiso de escrita (e agradeço o acolhimento), mudei também de título, aproveitando um que é também muito lá/cá de casa (como diria o famoso cinéfilo). E é-o por três razões, que passo a sintetizar.
Primeira: porque evoca Camilo Castelo Branco, um inspirado provocador e um rematado artista de que sou devoto, e fá-lo pedindo-lhe de empréstimo um dos seus escritos de que mais gosto, não só pela refinadíssima ironia (além da não menos refinada escrita), mas também porque permite várias leituras, desde a mais simples e óbvia, até outras mais complexas e profundas, que chegam ao sentido da vida (se é que o tem). Ora, eu gosto de coisas com várias camadas de leitura, e se servidas com refinamento melhor ainda. Segunda: porque Coração, Cabeça e Estômago de Camilo, mesmo na sua leitura mais simples e, também, bem humorada, traça um retrato poderoso das três épocas da vida da personagem principal, em jeito de retrato das três fases da vida de qualquer ser humano, pois Silvestre da Silva vive a sua juventude regido essencialmente pelo coração, a sua meia idade mais orientado pela cabeça e a idade mais avançada sob o exigente império do estômago.
Terceira: porque, para além desta leitura, e de todas as outras que o livro permite, coração, cabeça e estômago são, metaforicamente, três das quatro partes do corpo que julgo serem essenciais ao longo de toda a vida de um ser humano (todas elas, e deixando agora de lado saber quando, onde e em quem prevalecem mais umas do que outras). Coração para sentir, cabeça para pensar, estômago para digerir (ou até mais do que um, para aguentar quando é preciso). Todas ao mesmo tempo, como disse, e se possível – pelo menos em ambição ou aspiração – em equilíbrio entre si. E são essenciais na vida em geral, como nas várias vertentes dela, por exemplo a justiça – e faço nesta escolha jus ao essencial da minha (de)formação profissional e, também, ao facto de ao longo de dez anos ter escrito na maior parte dos casos, direta ou indiretamente, sobre esse tema; que, aliás, conheço bem, sendo que faço por resistir à tentação de cronicar sobre temas acerca dos quais sei pouco ou nada (para esse peditório não falta quem dê, não é preciso mais um).
E falta enunciar a quarta parte, metaforicamente falando, porque disse acima que eram quatro as essenciais. Mas talvez seja pouco avisado escrever a palavra que habitualmente se usa, e que corresponde, no plural, a um fruto que muita gente julga que é um legume, e que, noutra dimensão linguística, alude à genitália masculina. E talvez seja pouco avisado por duas razões: uma, porque os tempos não estão para palavras mais fortes, mesmo que metaforicamente falando; outra, porque ainda menos o estão quando essas palavras podem ser vistas como sexistas, não inclusivas e/ou afrontosas de toda a sorte de proibições que enfrentamos. Por isso, talvez seja pouco avisado escrever, aqui ou noutro lado qualquer, que além de coração, cabeça e estômago, na vida em geral como na justiça em particular, são precisos tomates. Mas eu escrevo, porque essa referência metafórica outra coisa não pretende ser senão o sinónimo de coragem, e não basta apregoá-la, tentar praticar também é bom.