por João Cerqueira
Certamente inspirada pela invasão em Brasília, a performer, travesti e prostituta Keyla Brasil, gritando «transfake», «fora do palco» e «respeito», interrompeu a peça Tudo Sobre a Minha Mãe em cena no teatro São Luiz. Vestindo uma tanga e exibindo belíssimos seios, subiu ao palco, repreendeu o ator que, segundo ela, lhe estava a roubar o papel e, virada para o público, denunciou as injustiças que o Teatro comete sobre os travestis. E o resultado desta invasão foi que no dia seguinte ao protesto o encenador alterou o elenco da peça e o ator descomposto em público pela ativista, André Patrício, foi substituído pela atriz trans Maria João Vaz.
Esta combinação de protesto, happening e balbúrdia inaugura uma nova era no Teatro em que o tempo da mentira e da exclusão acabou.
Desde as primeiras representações na Grécia Antiga, passando pelas encenações das obras de Shakespeare na Inglaterra do século XVI, pelo teatro Kabuki japonês, até às peças de Samuel Beckett e Harold Pinter neste século, o Teatro tem cometido sucessivas injustiças e enganado os espetadores. Ainda que ninguém se tivesse apercebido, o Teatro era uma farsa. Mas graças a Keyla Brasil, a farsa acabou. A partir de agora, o Teatro não vai mais fazer de conta de que as cenas de palco são verdade. Quem paga bilhete não pode continuar a ser enganado. A partir de agora, as cenas e os protagonistas serão totalmente reais. Como tal, o conceito de ator – esse farsante – também deixa de fazer sentido. Para que são precisos atores se a sociedade pode fornecer todo o tipo de personagens que compõem as peças?
É certo que os atores e as atrizes irão perder o emprego, mas não deverão fazer disto um drama. Porque também há quem beneficie desta mudança: os encenadores e os marginais. Em vez de perderem tempo a ensaiar atores, obrigando-os a sucessivas repetições e gritando-lhes ainda mais alto que a dona Keyla, os encenadores passam a ter um papel muito mais interessante. Saindo do palco para a rua, os encenadores irão à procura de ladrões, violadores, assassinos e loucos de toda a espécie para integrar o elenco das suas peças. Se necessário, farão mesmo o recrutamento nas cadeias, nos hospícios e entre antigos Secretários de Estado. E estes, em vez de matar, roubar, violar e fazer outras patifarias nas ruas, ou nos seus gabinetes, passarão a fazê-las no palco. Então, sim, teremos as melhores peças de teatro jamais representadas, com os protagonistas mais credíveis que jamais existiram, onde a diferença entre a ficção e realidade deixará de fazer sentido.
Como tal, na próxima encenação de Romeu e Julieta será necessário encontrar duas famílias que se odeiam para encarnar os Montecchios e os Capuletos, por exemplo aquelas que volta e meia desatam aos tiros uma contra a outra; um verdadeiro frade para ser Frei Lourenço; um assassino para fazer de Teobaldo e um candidato a suicida para fazer de Mercúrio e morrer no palco; mais outro que se queira matar para fazer de Páris; e, claro, dois jovens perdidamente apaixonados e com uma grande pancada na cabeça para também quererem morrer durante a peça. Além de não enganar o público com falsos ódios, falsos ferimentos e falsas mortes, esta forma de representação tem ainda a vantagem de gerar emprego pois cada nova representação exigirá novos atores para substituir os que morreram ou estão no hospital.
Infelizmente, peças como O Flautista de Hamelin não poderão ser mais levadas a cena porque a sociedade atual não iria permitir que se maltratassem os ratos. Também não será fácil encenar O Auto da Barca do Inferno por causa do Diabo e do Anjo.
Seja como for, a Revolução Trans-Copernicana do Teatro não apenas elevará o nível das artes cénicas, como ainda contribuirá para a reinserção social, a expiação da culpa dos políticos e o aumento do emprego. Este aumento do emprego poderá inclusive abranger os referidos atores e atrizes despedidos, uma vez que, alguns deles, ao não conseguirem trabalho noutras profissões, serão forçados à marginalidade acabando assim de novo no Teatro.
O método Stanislavky seguido pelos atores de Hollywood, que preconizava que estes se transformassem completamente nos seus personagens, está obsoleto. O método Keyla Brasil não tardará a chegar aos grandes estúdios americanos pondo fim à carreira de Brad Pitt, Julia Roberts e outras vedetas, mas abrindo a porta do estrelato aos condenados à morte das prisões do Texas, aos terroristas de Guantánamo e aos imitadores de Bernie Madoff.