Este álbum surgiu depois de ter feito diversas atuações a solo durante a pandemia, nas redes sociais, e alguns concertos, também a solo, quando as restrições foram levantadas. Nessa altura, já imaginava que ia lançar um disco? Não, foi tudo muito progressivo. Comecei por aprender umas músicas, depois fui desafiado a tocar no Festival Ao Vivo, no Instagram, e, quando foi possível voltar a atuar ao vivo, recebi um convite para fazer um concerto sozinho ao piano. Decidi gravar esse concerto, só para ter um registo. Ainda pensei fazer um disco com base nessa gravação, mas decidi abandonar a ideia. No entanto, continuaram a aparecer concertos. Consegui fazer uma digressão e ainda tocar em alguns festivais. Só no fim dessa jornada é que tive tempo para refletir e cheguei à conclusão que podia ser interessante gravar e registar este momento que estava a viver. Também como forma de fechar este momento que me acompanhou durante os últimos dois anos.
Dado o minimalismo desta produção e o contexto em que o disco surgiu, sente que ‘Vida Antiga’ é um álbum indissociável da pandemia? Espero que não, não tenho nenhum interesse em recordar a pandemia. Apesar de não ter nenhum interesse em esconder esse período da minha vida, acredito que somos feitos de todos os momentos que vamos atravessando, mas diria que este disco nem é, tematicamente, sobre a pandemia, apesar das circunstâncias desse período estarem ligadas a esse período. Quero é que este álbum represente a fase da vida onde eu estou. Um local onde sou capaz de olhar para o passado e para o futuro. Dividido entre dois momentos, o abandono de uma fase da minha vida e a acolher o momento seguinte. Pronto para sacrificar algumas coisas das quais gostava para ter acesso a outras das quais gosto muito também.
Estava a falar sobre este confronto entre passado e futuro, quando surgiram apontavam diversas influências aos Capitão Fausto, como os Tame Impala ou os Strokes, mas, neste disco, aposta em versões de artistas que, na maior parte dos casos, nem associamos aos seus trabalhos anteriores. Sente que esta foi uma maneira de demonstrar quem é atualmente e se demarcar dos seus trabalhos anteriores? Já há algum tempo, mesmo quando conversámos em banda sobre os últimos discos de Capitão Fausto, reparámos que, apesar de existirem influências que eram constantes, temos caminhado para um som que mistura aquilo que todos gostamos de ouvir. Obviamente, quando estamos a começar, existem referências mais fortes e que pesam mais na nossa criatividade. À medida que vamos dedicando horas ao nosso trabalho, aquilo que nos influência vai se adensando e são cada vez mais coisas diferentes. Todas as coisas que levamos na nossa bagagem, seja de música que ouvimos ou de experiências pessoais, vão contando e vão-se registando em nós.
O peso dessas influências ajudou na decisão de escolher os autores que pretendia interpretar? Quando cheguei à fase de fazer este disco, mesmo reconhecendo que existem algumas referências em termos sónicos ou estilísticos, ou que existem interpretes com que me identifico mais e que, se calhar, instintivamente, vou imitar, a ideia de ‘Vida Antiga’ não vive muito das suas influências. Acho que o principal a reter deste disco e das suas músicas é o porquê de as ter escolhido, como é que as vou interpretar ao piano, como é que as interpreto segundo o meu instinto e ouvido e sinto que é isso que o define.
Como fez então a escolha das músicas? Foi muito espontânea. Algumas chegaram ao disco porque, naquele dia, estava a ouvir a música e decidi sentar-me ao piano e tentar descobrir como é que podia ser tocada. Outras já andava a tocar na guitarra e decidi transportar no piano. E, numa fase mais final, quando já tinha alguns espetáculos marcados, fiz uma seleção de canções que combinavam bem. Todas as músicas que escolhi para o álbum conseguem ser bem definidas deste momento que sinto que estou a viver pois servem como uma ponte entre o passado e o futuro.
Entre estas escolhas, as que me surpreenderam mais foram as interpretações de Erik Satie e Claude Debussy. Qual é a sua relação com a música clássica? Tenho formação clássica e é algo que me remete muito para a minha infância. Os meus país são músicos, o meu pai é músico de orquestra e a minha mãe é cantora lírica, portanto, cresci sempre acompanhado por estes estilos. Agora, o facto delas entrarem neste disco é devido ao piano. Isto foi feito com muito tempo livre e sentado à frente das teclas.
Esta maior disponibilidade permitiu aprender as canções e desenvolver a sua técnica? Neste tempo aprendi canções, fui compondo novos trabalhos, sejam estas versões ou músicas para os Capitão Fausto e resolvi aprender a tocar peças de piano, que nunca foi o meu instrumento principal e que sempre me senti um pouco limitado, mas, com esta disponibilidade aliada a uma grande vontade de tocar, acabei por ultrapassar estas dificuldades, aprender coisas novas e desafiar os meus limites técnicos. Estas duas músicas, Gymnopédie No.1: Lento e Doloroso, de Satie, e Arabesque No. 1 em Mi Maior, foram duas das que me propus a aprender e a tentar decifrar. Nessa perspetiva, senti que tinham tanto lugar neste disco como todas as outras.
Qual é para si a característica que une todas estas canções? Todas estas composições e criações são trabalhos que gostaria muito de ter feito, mas não fiz. No entanto, gosto de pensar que, noutros universos, poderia ter conseguido fazer ou, pelo menos, gosto de imaginar-me como o personagem que as criou. Interessou-me misturar muitos elementos diferentes, arranjar lugar para músicas que vem de sítios, épocas e culturas diferentes e juntar todas numa mesma sala à volta de uma mesma mesa no mesmo momento.
Ao interpretar estas canções eruditas, sentiu uma pressão adicional visto que o piano não é o seu instrumento principal e estava a tocar composições criadas por lendas da história da música? Em relação ao Satie e Debussy eu diria que sim. Acho que na parte das canções, para melhor ou pior, é aquilo que eu costumo fazer e estava bastante conformado com o que poderia ser o trabalho final. O máximo que consigo fazer é dar o meu melhor e foi isso que fiz. Em relação às peças de piano, já estava um bocadinho mais “fora de pé”. Não é propriamente o sítio onde estou mais à vontade. No entanto, acho que torna uma gravação destas mais interessante.
Porque é que acha isso? Estas peças, normalmente, só são interpretadas por pessoas que têm milhares de milhares de horas de piano ao longo da sua vida e que tratam o instrumento de uma forma muito mais profunda, com mais técnica e estão mais familiarizados do que eu. Portanto, acho que acabo por conseguir um registo mais particular e peculiar devido ao meu contexto de autodidata no instrumento. Fiquei satisfeito com o resultado final.
Estava a falar sobre como tocar estas peças foram um desafio. Nesta altura da sua carreira, depois de álbuns bem sucedidos com Capitão Fausto, Conjunto Cuca Monga e Modernos, sentia que precisava de se desafiar? Acho que é sempre uma experiência muito rica, até ao dia da nossa morte, sair da nossa zona de de conforto e desafiarmo-nos, como dizes. Temos de nos pôr sempre na posição de que temos sempre qualquer coisa para aprender. E mesmo os mais velhos, experientes e sábios, acho que devem sempre ter esta postura do alto da sua sabedoria. Continuam a ser pessoas que ainda podem continuar a aprender.
Esta é uma postura que adota para a sua vida? Gosto de pensar na vida dessa forma, dá mais algum alento e esperança, porque assim vou ter sempre uma razão para acordar no dia seguinte. Vou continuar a ter força para estar aqui, ter interesse e ficar encantado. Para isso, basta aceitar este espírito de descoberta e aceitar e estimular esta minha curiosidade. Portanto, sim, coloco-me em zonas que são mais desafiantes, para poder aprender, para evoluir e para poder errar também.
‘Vida Antiga’ foi gravado num só dia, como foi essa sessão? Suponho que deve ter havido muito pouco tempo para corrigir gralhas ou para grandes perfeccionismos. Era importante este disco conter todas estas imperfeições e este som mais cru. O disco foi gravado no dia 22 de julho de 2022, no Porto, no estúdio Arda. Acredito que existe sempre uma tentativa de nos aproximar de um trabalho o mais limado e arrumado possível. Mas decidi, logo no início do processo, que este disco, visto que é o resultado de uma série de espetáculos ao vivo, seria gravado da mesma forma, com um take direto, porque achei que era o que fazia mais sentido, estando este disco a responder a um período em que estas canções foram tocadas ao vivo.
Sente que teria um resultado diferente caso tivesse tido mais tempo para gravar este trabalho? Independentemente dos dias de gravação, acabamos sempre por nos conformar com as imperfeições que ficaram gravadas. Acho que é isso que traz alguma humanidade ao disco. No entanto, fiquei muito contente com o resultado e acabei por escolher as melhores performances.
Houve alguma canção que tivesse de deixar de fora? Acho que não. Acho que acabei por aproveitar todas as canções que gravei. Foi um dia produtivo [risos]. Até a Sempre Bem, música dos Capitão Fausto que aparece depois do final da Eu vim de Longe, em formato de música escondida, foi gravada um quarto de hora antes de irmos embora, num espírito de “olha, vamos fechar a loja”. O ‘Vida Antiga’ acaba por ter também um lado muito fotográfico de registo daquele dia. Um dia na vida do estúdio Arda e do Tomás Wallenstein. Por isso fez sentido acabar com esta música.
No passado, enquanto Capitão Fausto, já tinham gravado o tema Marcolino, do Fausto. Agora, regressa à música de intervenção, interpretando temas de Zeca Afonso e José Mário Branco. Quão importante é manter viva esta tradição? É importantíssimo. É evidente que existe toda uma parte histórica nestas músicas que é importante manter viva. A memória é a base do progresso. Só relembrando tudo aquilo que aconteceu para trás, e com o devido cuidado para não apagar a história, é que nós conseguimos evitar fazer erros.
Foi por isso que decidiu gravar estes temas? Isto é a componente mais sociopolítica das músicas, mas, mais importante ainda para mim. Não para as pessoas, mas para mim. É que isto são obras de arte. São músicas fantásticas. A obra do José Mário Branco, do Zeca Afonso, do Fausto, do Sérgio Godinho, do Adriano Correia de Oliveira são património artístico que merece ser lembrado e homenageado. Eu, do alto da minha modéstia, o que quis mais fazer ao incluir também estas músicas, era uma reverência a quem as fez. Espero que elas se mantenham vivas, não só pelas suas gravações originais, mas por toda a vida que outros interpretes lhes possam vir a dar no futuro. A música gravada em massa tem uma curta história. Vem da segunda metade do século XX, tenho muita curiosidade em saber o que é que será estarmos daqui a 400 anos a ouvir música gravada neste momento. O Arquivo Histórico vai mudar profundamente, vai ter uma variedade enorme, portanto, as canções e a música vão voltar a ser lembradas, não só pelo seu registo original, mas pelos seus sucessivos registos e as sucessivas reinterpretações.
Aproveito que estamos a falar da música interventiva em Portugal para perguntar se teve oportunidade de ver alguns dos concertos de despedida do Fausto? Fui, em 2021, ao concerto no CCB, em Belém, onde fez um espetáculo que era mais baseado na sua obra em geral e gostei muito. Adorei. Fiquei muito contente por ainda o ter conseguido ver e tive pena de não conseguir estar presente, no ano passado, nos concertos que fez na Aula Magna, a apresentar o Por Este Rio Acima.
No ano passado vi o seu concerto na Aula Magna, mas foi algo agridoce. Apesar das músicas terem sido muito bem interpretadas e ter sido um momento de comunhão e de homenagem por parte do público, foi um bocado triste ver o Fausto tão afetado pelo peso da idade. Estes concertos valem muito pela componente humana. Existe muita realidade em percebermos e convivermos com realidades em fim de ciclo. Um artista com uma idade elevada e com as suas capacidades diminuídas, continua a ser o artista que foi e é muito humano ele já não conseguir fazer aquilo que fazia porque as suas capacidades motrizes vão diminuindo naturalmente. E não é só ao Fausto que isso acontece, acontece a toda a gente no mundo, portanto, aquilo acaba por ser uma representação da realidade que é muito enriquecedora.
Ainda nesta questão da canção de intervenção, é importante para si o disco ter este lado da luta? Nunca tinha pensado nisso dessa forma. Acho que o processo de seleção foi muito natural, foi mais através das canções por si só. É algo que eu aceito estar dentro da minha obra, é algo que em que eu me consigo inserir, mas não vejo isso como a minha principal motivação. Acho que não sou um lutador nato e acho que me devo cingir àquilo que consigo fazer melhor e acho que consigo fazer contributos de outra forma. Mas tenho muito gosto e uma grande honra em poder reinterpretar vozes da luta, isso sim.
Depois de terem recebido tantas críticas que vos acusam de serem betos, de virem de famílias que têm ligações à cultura em Portugal, imaginei que fosse uma forma de mostrar um lado diferente a essas pessoas… Essa conversa sempre foi algo que me interessou muito pouco e acho que discutir a obra de uma pessoa pela sua proveniência é completamente descabido. Não levo a mal que as pessoas queiram falar disso, mas não me interessa. Não acho que seja uma conversa relevante e não tinha nenhum ponto a provar ao escolher estas músicas. Escolhi estas músicas porque são boas músicas e porque me revejo naquilo que elas dizem.
Agora, vai voltar a dar concertos a solo. Para alguém que sempre tocou acompanhado com uma banda, como é que tem sido esta experiência de ter o holofote focado apenas em ti? Tem sido bastante interessante. Vou agora dar quatro concertos para apresentar o disco. No dia 24 de Fevereiro, na Culturgest, no dia 25, em Albergaria a Velha, a 3 de Março, em Alcains e a 4 de Março, em Famalicão. Em relação ao espetáculo em si, tem tido umas experiências que são muito interessantes. A partir do momento em que estamos em cima do palco, acho que as coisas não são muito diferentes de quando estou com os Capitão Fausto, no Conjunto Cuca Monga ou com os Modernos. Existe um momento de concentração antes do concerto, onde estamos todos no mesmo lugar, uma espécie de uma nuvem, durante aquela hora que estamos ali, e, nesse sentido, não é muito diferente.
Qual é que tem sido, para si, a maior diferença? O antes e o depois é que é surpreendente. Estar a preparar para subir ao palco numa sala vazia é uma experiência muito diferente de quando estamos com amigos, a conversar e a combinar o que é que se vai fazer ou não, a rever algumas ideias. Ou quando saio do palco, com uma grande euforia e alegria do momento que acabou de acontecer e a regressar para uma sala vazia outra vez, a conversar comigo próprio em vez de ouvir a experiência dos outros. Essa parte é curiosa, mas é evidente que gosto mais de o fazer a partilhar o momento. Gosto mais de tocar em banda e gosto mais de tocar com os Capitão Fausto.
Para quem ainda não o viu neste formato, o que é que os fãs podem esperar destes novos concertos? Vou dar o meu melhor, sem dúvida, esse é um compromisso que posso ter. Este concerto é muito à volta do som do piano e do que é que é o piano numa sala. O que é que é um instrumento que foi desenhado para ser um amplificador por si só. Em que é que resulta esse som. E vou ser eu a cantar ao piano as músicas que estão no disco e outras músicas também. Acho que não consigo definir muito mais do que do que isto, mas estou muito entusiasmado e acho que vão ser espetáculos muito bons e que vou desfrutar muito. Tenho todo o gosto em convidar quem quiser vir, acho que vai valer a pena.
Com todo este entusiasmo em torno deste projeto, acha que no futuro podemos vir a contar com outro disco a solo da sua autoria? Ainda não pensei nisso. Neste momento, estou focado no disco novo de Capitão Fausto, que está em processo de composição e que estamos a avançar rapidamente. Esse é o meu foco principal. Sempre foi e acho que sempre será. É onde consigo participar num processo que não depende só de mim, antes pelo contrário. É onde encontramos consensos e encontramos um lugar que é comum aos cinco, mas que não é de nenhum de nós, é de todos ao mesmo tempo. E isso é o que me interessa mais fazer agora, para o futuro. Em relação a outros discos ao piano, lancei para já este e quero desfrutar do momento, ainda não tenho mais planos.
Então está a guardar as suas melhores canções originais para os Capitão Fausto? Sim, não só as melhores, as piores também [risos]. Aquilo que eu componho e que escrevo quero que vá para os Capitão Fausto.